quinta-feira, outubro 21, 2004

O melhor de se começar de novo

Um dos meus bons amigos, de café, de coração e tudo, chegou certo fim de tarde com a conversa imensa de que precisava de começar de novo. Abraçou-me (uma pancada seca nas costas) e despediu-se com o jeito estranho dos personagens de Hollywood quando sabem que vão morrer. Aquele segundo de brio e azedume que costuma arrancar muita e boa lágrima ao espectador, não o repetiu o meu amigo. Disse, com os olhos secos: "O mundo não pode ser assim tão grande que não nos voltemos a ver em algum lado", respirou fundo e saiu com uma celeridade inusitada pela porta por onde tinha entrado.
Sobre um existencialismo tão específico não me ocorre que Sartre algum dia possa ter escrito algo. Sartre era mais indíviduo para escrever sobre a existência enquanto naúsea e inquietude. Amargura talvez. Ou impossibilidade. Era bom, pois, que alguém se lembrasse de tentar explicar porque razão as pessoas cismam em remediar a existência com a ideia absurda de se começar de novo, como se se pudessem gravar e regravar existências, rasurar erros de percurso ou reconquistar qualidades, repetindo uma e outra vez a marcha e o pulso dos dias, até porque esse é o fado e o pregão que mais se repete nas passagens de ano, as passadas e todas aquelas que estão para vir.
Pregão incipiente porque ninguém terá o condão de se recriar, de se confiar com a confiança a abraçar a plenitude que a partir deste segundo, deste minuto, deste raiar e deste escurecer passarei a ser tudo aquilo que até hoje não consegui ser ou tudo aquilo que, melhor dito, nunca fui.
O meu amigo, por exemplo, vinha dizendo que precisava de nascer de novo, de saber de novo o que é um útero, de se agarrar promogénitamente ao mundo através de um novo cordão umbilical, que precisava de navegar por uma placenta dourada em que a voragem dos dias pudesse ser também a voragem das coisas novas, como que vistas pela primeira vez. Depois de se ter despedido, faltaram por três meses notícias dele e quando chegaram, num fim de tarde de Verão, vinham embaladas num timbre grave e sólido, senão mesmo solitário. Era agora jardineiro nas margens do Lago Maggiore: era seu o rumorejar das águas calmas do lago e a brevidade do orvalho sobre as rosas, mas nascer de novo (foram estas as palavras dele) roubou-lhe tanta coisa que percebera que se morre sempre no exacto segundo em que se nasce.
Este "Prestes João" que agora nasce poderá ter desaparecido neste exacto segundo, porque nenhum nascimento é um verdadeiro nascimento: é sempre uma retoma, uma transferência e uma herança, um legado genético e sanguíneo. No caso, o "Prestes João", sem constituir uma sequela daquilo que foi durante quase um ano e meio o "Papaia Express", recupera-o na indignação, na voracidade, na polivalência e quem sabe mesmo, nos conteúdos que um dia por ele se redimiram.
Eis a melhor forma de se começar de novo. Com a consciência plena do caminho que se deixou para trás.