sexta-feira, outubro 22, 2004

O Bigodinho do Ditador

Vejam se vêm. Na parede de concreto, quase a um canto há uma luz que a humidade engasga. Sentado à mesa, no meio da sala diminuta, o ditador brande uma lâmina. As mãos abanam-lhe e derrubam por várias vezes o espelho que tem à frente. Das outras salas chega a escuridão, a luz que se ausenta. Á superfície, o tonitruar dos disparos e das bombas cresce com a celeridade com que cresce a trovoada. Na sua sala o ditador escuta com os sentidos todos o apocalipse sobre a cidade, o juízo que se abate sobre si próprio. A pele crispa-se-lhe, os olhos sucumbem à penumbra e o ditador chega a lâmina à abside da pele e devasta, as mãos trementes, algo que o acompanhara desde que a grande aventura começara, a raiz da obstinação. Ao seu lado, o corpo da Braun auto-encardido, a luz que funde e refunde, a lâmina que varre a pele, agora nada mais importa, pensa o ditador, e o bigodinho desaparece e quando o bigodinho desaparece a luz funde para não refundir mais e o escuro invade tudo, os corpos e a lâmina, a mesa e os cantos. Quando Chamberlain e Daladier entregaram os Sudetas, o ditador viu como se atapetava a amplitude do seu destino e que este seria vasto em todas as coisas porque com os Sudetas, Daladier e Chamberlain entregaram também o direito e o beneplácito dos povos.
Quando o ditador cortou o bigode, novos ditadores nasceram, mais perigosos. Perigosos porque não têm bigode, nem Chamberlain. Melhor. São o ditador, Daladier e Chamberlain. Eles e nós. Agora que temos censura, repressão policial, que mais justifica o beneplácito?