Coimbra, a turbulenta
Sobre Coimbra se escreveu o ano passado no Papaia Express em termos que tentavam vislumbrar Coimbra tal como ela sempre se afirmou, uma cidade vitruviana nos defeitos e nas qualidades, mas quase sempre vanguardista na forma como a mudança social é encarada. O post "História Breve da Contestação - Da Insensatez à Ignomínia" veio a público o ano passado como uma espécie de resposta a um editorial de José Manuel Fernandes em que o director do "Público", à imagem de uma facção maioritária dos media pundits (onde alinham por exemplo Francisco José Viegas e Pacheco Pereira)que fazem valer influências no panorama político nacional, procurou minimizar a contestação dos estudantes de Coimbra ora determinando-a como uma herança residual de outras contestações, ora resumindo-a ao fervor revolucionário típico da juventude. Assim se escreveu pois no ano passado,
"A história das providências cautelares de Coimbra e do fecho da Porta Férrea e da contestação insensata e insalúbre dos estudantes não pode ser contada, como se tem visto por aí, com a ligeireza e a linearidade com que se contam os contos de fadas e de pós de perlimpimpim, nem sequer com a desenvoltura redimissionista com que estamos habituados a olhar para o passado, procurando nos feitos menos maus de ontem alguma glória para o caos de hoje. Em palavras menos corridas, a história não pode nem deve acreditar o que corre como sendo, à luz do que transcorreu, ou bom ou mau ou glorioso ou heróico. É sempre, e definitivamente, diferente.Com Coimbra e com a Universidade de Coimbra e com a convulsão ocasional que meia volta afecta a parte alta da cidade o mesmo acontece. O facto de tal acontecer não deve, no entanto, servir de pretexto para que os dias agitados de uma cidade que todos se habituaram a conhecer sob o epíteto de "cidade dos estudantes" sejam contados como se fossem exageros ou problemas de uma geração amimalhada, desprovida de sentido - quer de ocasião, quer das prioridades.O encerramento da Reitoria não é um "fait divers" que se possa contar ao país nos trâmites em que os Grimm ou Hans Christian Anderson narravam os idílios da infância, " Era uma vez meia dúzia de estudantes bebâdos e mal-ajeitados que não tinham mais que fazer e protestavam contra tudo e contra todos", correndo-se o risco de, isso acontecendo, maior ser a probabilidade de ocorrer o que já agora ocorre, que é exorcizar os problemas e as prioridades (verdadeiras) do país, simplesmente ignorando-as.Lógica ou ilógicamente, sou dos que partem do príncipio que todos os tratados de paz têm um não sei quê de dispensável e de inóquo: a razão primeira pela qual são assinados. A guerra.A analogia é similar no que concerne à contestação e ao protesto. A sociedade democrática ainda não é suficientemente hipócrita para iludir a natureza das manifestações: os manifestantes e a discórdia não existem por si só ou por nada, existem como sintomas da gravidade ou da inaceitabilidade de certas situações.No caso de Coimbra, é muito pouco silogístico deduzir que por trás do descontentamento dos estudantes está muito mimo, muita bolacha maria, muito smirnoff ice e pouca responsabilidade. Os problemas existem em Coimbra como decerto deverão existir noutros lados. A forma como a Academia de Coimbra lida com eles ou tenta chamar atenção para que existem está longe de ser a mais adequada: chega a ser pueril e profundamente situacionista, de um situacionismo que mais que abrir portas e expandir horizontes, encrava engrenagens e circunscreve esforços. A redenção da memória das lutas de 1969 e a sua utilização como bandeira e até como motivo alegórico sempre que nos corredores escuros da Associação Académica de Coimbra se mitigam manifestações e se professam debilidades não é o estandarte que as capas negras da mais velha academia do país julgam ser: é, pelo contrário, um empecilho, visto pela opinião pública e por aqueles que viveram sob os auspícios do Estado Novo como uma ofensa, até como um excesso de liberdade.Seja ou não, é uma forma de luta regressiva e como tal está debilitada desde a raiz. Não quer isto dizer que os propósitos que a luta esconde sejam também regressivos e pouco válidos:o protesto que agora se faz contra o aumento de propinas é também um grito de alerta dado por uma Universidade que vai morrendo aos poucos, que sufoca na sua própria história e no pútrido peso do prestígio que um dia conservou. De uma Universidade onde os espaços rarificam e onde as condições se detrioram com o ligeiro soçobrar do tempo. Quem por lá dispendeu alguns dos seus anos poderá atestar das salas de aulas de Direito a transbordar de alunos, dos espaços de valor histórico comprovado - casos do Laboratório Chímico ou do Jardim Botânico - votados a um abandono imerecido ou dos casos de reaproveitamento forçado e quase caricato dos espaços, como o que sucede com o que era até meados da década de 80 os Hospitais Velhos da Universidade/ Colégio de S. Jerónimo. Este último aproveitado com tal eficiência e constância que até a antiga morgue serve para patíbulo do saber.Não é um post de protesto, este post. É antes um post quase ritual que tem por base uma viagem breve aos círculos da memória. Poderei entende-lo, pessoalmente como uma dívida de mim para mim, um exorcizar de certos fantasmas e de maiores tristezas, como essas que nascem do fundamentalismo com que se olham para as coisas e com que a imprensa parece acolher e sintetizar o presente. E é um convite a José Manuel Fernandes e outros que tais para que venham até Coimbra e se dignem a ter uma aula de Jornalismo (um dos cursos que por lá se ensinam) na antiga morgue do velho Hospital. Há quem diga que ainda por lá se sente o cheiro dos cadáveres. Eu digo que é o odor de Portugal."
Um ano depois, com um motivo que permanece e um contexto que se agrava (sem que se fale desta feita de providências cautelares. Para que as palavras quando se pode ter em seu lugar acção e gás pimenta?) fala-se de Coimbra como que entredentes e mesmo os ministros, esse D. Sanches quando fala com os jornalistas fala com o troço de um sorriso trocista a aflorar-se-lhe na bestia face como se tudo o que os telejornais mostraram nada mais tenha sido que uma encenação de marionetas e robertos e em parte talvez se sintam assim muitos portugueses, como se tivessem um braço enfiado pelo cu acima, um governo todo de fachada que se esgueira e entorpece mas isso só diz respeito a Coimbra porque foi em Coimbra e contra os estudantes que o governo se mostrou rafeiro enraivecido e arreganhou os dentes com uma sobranceria que assusta. E como os estudantes foram a "carne para canhão" perfeita ninguém parece olhar a carga da polícia como um problema. Enfim. O que importa vislumbrar para além das imagens é, se afinal, os estudantes da mais velha universidade do país têm ou não razões válidas para invadir uma reunião do Senado e para manifestarem tanto repúdio a uma decisão do governo. Julgar o acréscimo das propinas por si mesmo talvez não justifique o protesto inflamado dos estudantes. Afinal, e esse é o grande argumento de personagens como Francisco José Viegas, quem tem dinheiro para pagar umas tantas noites de finos numa das discotecas da cidade, terá também para pagar o valor de uma propina, seja esta ou mais ou menos elevada, até porque existem estudantes que fazem bandeira da irresponsabilização, para quem a universidade é mesmo copos e vinho verde. Mas esses, estou certo, se não aparecem nas aulas, também não aparecem nas manifestações. O fulcral da questão é que o acréscimo das propinas não pode ser julgado apenas por si próprio. A sociedade não é uma estrutura atomizada e as medidas tomadas num domínio reflectem-se necessariamente no outro. E aqui reside algo essencial: será que o aumento das propinas corresponde na prática a um ensino com melhor qualidade? E de que forma é que este aumento de propinas poderá corresponder a um investimento seguro para o futuro de quem paga a dita prestação? Quem poderá garantir (numa altura em que os recém-licenciados, ao invés de serem considerados mais valias são considerados produtos marginais) que o ensino superior é ainda uma aposta válida em Portugal? Quem souber que responda. Sem demagogia. |
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