sexta-feira, maio 26, 2006


Maus augúrios e fronteiras. Os autarcas do interior do país - principalmente os que conduzem os seus pequenos feudos de soberania nas abas das Espanhas - deviam estar contentes. O governo tem obrado no sentido de tornar tais regiões mais agradáveis aos que andam de baldão ainda à procura de um pouso onde se possam fixar.
O governo, claro, mas de José Luis Zapatero. À custa de uma matemática tributária aligeirada, o executivo espanhol tem conseguido incendiar nos portugueses - até agora ainda e apenas os da raia, do mal o menos - a vontade de voltar a dar o salto. Com a gasolina mais barata cerca de trinta cêntimos e o custo de vida abaixo dos níveis referenciados para Portugal, são cada vez mais os portugueses que se abastecem em Espanha: não apenas de gasolina. De papel higiénico, de fruta, de tudo o mais.
Ora de Espanha podem até nem vir bons ventos ou bons casamentos. Mas enquanto os ventos de leste continuarem a soprar bons preços e o país de eivadas megalomanias e mais sentidas misérias continuar como o paúl de Pessoa (a estagnar, estagnar), Espanha ganha os foros do lugar certo. Pode não ser o único. Mas não é, pelo menos, o lugar errado.
Esse é Portugal, país non-sense. De estádios mastodónticos e vazios e expos renascidas em casinos. De maus salários, maus ares e horizontes. Onde a vida custa porque a vida pesa. Onde não existe honra ou sentido de vergonha e onde existiu um vinte e cinco de Abril esparsamente conseguido, que nos enche ainda hoje de uma esparsa reverência e não nos deixa semear de bombas o que bombas merece. Não nos deixa ultrapassar a barreira da apatia e o lento definhar.
Numa altura em que os instrumentos financeiros da política económica e aduaneira da União Europeia atingem um estado de presumível maturidade e fecunda aceitação junto dos povos da Europa, seria de se esperar que a fronteira se desvanecesse ao ponto de se tornar apenas o fio de ariadne da tradição e do destino dos povos, o novelo da identidade que tanto aproxima como marca a diferença.
Durante séculos, a fronteira - fruto proíbido e portanto apetecido - ritmou a existência dos povos da raia, moldou-lhes o carácter e até o linguajar, que em Quadrazais-Sabugal, os contrabandistas de outrora continuam a enrolar paivantes na vez dos cigarros.
Morta a saga do contrabando e enterrados os últimos varões do império, a fronteira parece recuperar de novo o cunho delimitador e repressivo que durante séculos terá sido o seu desígnio maior.
Erguem-se de novo barreiras: não estorvam a vista, não rasgam a pele com a ferocidade dos espinhos metálicos das cercas. Ferem antes com subtileza a clareza do entendimento: como se explica uma oscilação de trinta cêntimos num litro de combustível de um e de outro lado de uma linha imaginária?
Que matemática económica, que metafísica dos costumes, que brandura emocional poderá justificar a nova fronteira que se ergue quando a velha fronteira, da fiscalidade e da soberania padeceu de europeísmo há tanto tempo já?