terça-feira, abril 04, 2006

Oliver


Gosto da literatura carnal, das páginas onde a dor e a fragilidade humana irrompem com a violência das rajadas e a voracidade dos tufões, despidas de meneios e cruas, tal como as encontramos nas mãos dos mendigos e nos olhos dos loucos.
Admirável é, por isso, essa menina dos fósforos, açúcena de todas as fragilidades, que Hans Christian Anderson criou para criticar uma sociedade que deixa morrer o futuro.
É o realismo amargo com que Miguel Torga enfeita as personagens dos "Novos Contos da Montanha", umas vezes crentes, outras sediciosas, outras ainda simplesmente obstinadas e malévolas, que a maldade é um rasgo de alma omnipresente e tentador.
Dickens é, nesse âmbito, quem melhor consegue colocar a maldade entre nós, torná-la quase frugal e palpável.
Cria malabarismos gravosos onde sobrevivem personagens eternas: o orfão para quem o futuro não é mais que o sofrimento adivinhado e um rasgo de incerteza, o ávaro de coração pétreo e, mais importante, a sociedade dormente que resvala, por conveniência, para o abandono negligente e impávido.
Ontem vi "Oliver Twist", a nova versão, filmada por Roman Polanski. Mais lacerante porque mais realista, a versão de Polanski é também mais cativante e de mais fácil digestão.
Ganha à versão de David Lean, filmada em 1948, por não diluir a trama de Dickens numa fantasia musical, onde a pungência do "fado do desgraçadinho" rouba ao enredo a acutilância da crítica social.
A versão de Roman Polanski conserva numa tal capacidade um dos seus maiores atractivos. Consegue também aquilo a que se propõe: tornar tangível e odiosa a maldade de Bill Sykes, humana a desgraça de Fagin e possível a complecência social com que o mundo se ilude a si mesmo. Como hoje, de resto.