terça-feira, dezembro 14, 2004

Esta Lisboa que amaste

Era como se o nome, de mil vezes comungado, fosse uma insuspeita divindade, indelével e impensável, rompendo com cores e formas exageradas as colinas de Lisboa, sem outro alcance e sem outro horizonte que um leque de imagens amorfas, com contornos de engano e expectativa absortamente fitos na vacuidade da memória.
Era como se fosse um dogma, esse nome, um lugar sagrado dos canais do ser e do sangue, que ele há dogmas maiores que os do espírito, são os que propulsionam os homens a regressarem a onde nunca estiveram e a aceitarem como seu o que nunca possuíram, sendo que mesmo o tempo, que é um nada etéreo nunca maleável e muito menos reiterável também se pode possuir, basta que se atente ao que se diz, No meu tempo, como eram diferentes as coisas, diferentes os telhados de Lisboa e diferente seria, nesse seu tempo que não se sabe qual terá sido, esta rua do Vale de Santo António, divindade insuspeita mas também ilusória, longe, demasiadamente longe das imagens e dos contornos vagos com os quais se semeou a memória e nela, na sementeira e na memória, os passos de quem por aqui se aventurou há demasiado tempo para que desses dias alguma coisa vingue ainda.
Em muito são as cidades como os areais. Quem com lucidez caminhe junto da linha inconstante da rebentação pode ter sempre como fresca e segura a recordação de ter sentido a espuma frouxa a abalroar-lhe os pés e as passadas. Razão têm os franceses, é uma mulher, la mér, o mar, que morre em carícias ziguezagueantemente rebentando por entre os pés de quem cruza o areal, restando tão só e apenas a memória de um beijo lânguido e húmido e nada mais, nem o ressequir intenso do salitre sobre a pele, nem o feitio disforme dos pés distinguindo a areia, apenas a impressão titânica de se ter o silêncio e a imensidão formigando sob a planta dos pés e o fragor da recordação sempre vivo, No dia em que te visitei, Mar, beijaste-me os pés e eu senti só paz.
Em pouco serão as cidades paisagens de paz, só o estertor dos automóveis ecoando nas fachadas vítreas dos edifícios basta para que a tranquilidade se dilacere e o cansaço se adense, floreando a pele, siderando nervos e humores e paixões, triplicando estupefactas vezes a pressa, o cansaço, as ânsias e mesmo os sonhos, nas cidades, circulam a velocidades proibidas, a mil à hora, não são nem de carne, nem de osso, são um misto de nada e de tudo, do que se tem e do que se querendo, não se alcança. De resto, são em muito as cidades como os areais. Quem com lucidez esbanje os seus dias, as suas forças, os seus sonhos nas ruas, nas avenidas, nas escadinhas e nos pátios, nos becos e nas alamedas, nos jardins e nas praças, se envolva perifericamente no caos oportuno das cidades, mergulhando no macadame e na inconstância dos viadutos, das pontes e das circunvalações, veste a cidade como a uma segunda pele e recorda, não se sabe bem com que fascínio ou com que temor, a esmagadora verticalidade dos prédios, os automóveis coagulando no vermelho dos semáforos como se fossem glóbulos multicolores, os rostos e os passos siderados nas artérias da cidade, os telhados debruçados sobre si próprios, Alfama numa colina, a Estrela ao longe noutra, apenas uma cúpula solta esgueirando-se com natural altivez por entre as fachadas cinzentas, iguais, da demais Lisboa, que é de Lisboa que se trata, Lisboa de ontem e Lisboa de sempre, seria bom que se recordasse, Lisboa, dos teus dias e dos teus passos, mas é como o mar, a cidade: torna indeléveis os homens, apaga-lhe os gestos, quando não mesmo o afago de estranha ternura com que, no momento da despedida enfeitaram o horizonte, o miradouro de Santa Luzia é como que uma caravela descendo o rio, Eis o último sol que vejo morrer sobre Lisboa, amanhã Lisboa, serás para sempre ontem.
Assim terás murmurado há mais de meio século e assim me despeço, por tua mão, da minha e da tua Lisboa. Desço com sofreguidão a Rua do Vale de Santo António, ao encontro daquilo que recordas. O céu macera temporal em novelos de um cinzento fétido que quase rasam o topo dos prédios, o vento enxovalha já o rosto com algumas gotas esparsas, não tarda choverá, é o Inverno que se eterniza, é o Inverno que como eu, se despede, é o Inverno que me faz apertar o casaco contra o peito e estugar o passo.
Chego ao cotovelo do Vale de Santo António. Falaste-me deste palmo de calçada que estende a rua muito para além do cinzento cimento verde do Tejo, para um plano do infinito que rouba a validade quer ao tempo, quer ao espaço, cinquenta anos volveram e sei que no rio se reflecte o mesmo espanto, a mesma majestade. No rio aguarda, encalhado, o teu olhar.
A rua do Vale de Santo António, dizias, é um precipício amansado que se despedaça da Graça até Santa Apolónia, merecia, do cotovelo para baixo um funicular como o da Bica ou da Glória, não é tão sentida a acentuação, mas o Tejo condensado ao fundo parece que rouba o fôlego a quem sobe, parece que encurta os passos a quem desce, intumesce, num sórdido limiar, os olhos- Quase ao fundo da rua morava eu, a vinte metros da capela. E do outro lado, no cruzamento da Leite de Vasconcellos, estava o meu pai, o teu avô, o do meu lado, sempre à janela pela tardinha, era como se fosse uma albergaria só para os trabalhadores dos caminhos-de-ferro. À tardinha, antes da tal que se chamava Dália mandar servir o jantar, era a hora a que o patrão chegava do Alfeite da Marinha, ia à janela só para ver o teu avô do outro lado. Não dizia nada, sabes? Sorria, levava a mão aberta ao peito e depois apontava para a minha janela. E eu era, então, a menina mais feliz dessa Lisboa que amei.