domingo, dezembro 12, 2004

Esta Lisboa que vos ama

“Deixa que te diga que deves de ter passado o mais da tua existência enterrada num frasco de pasta de dentes ou açoitada por banhos frequentes de vinagre e mostarda”. É narrador deste trecho de coisa alguma quem se perde nestas cogitações, monólogo cerrado consigo mesmo ou surdo diálogo com o brilho de uma moeda sem sinais do uso do tempo, um brilho lambido que carcome e enovelesce o brilho próprio do sol, Chegará aqui o sol, a esta montra de vidro frio e opalescento da numismática da Baixa?, chegue que não chegue, és uma senhora moeda, apoquentas os olhos e a cobiça, quem és tu e como brilhas que nem a sombra te tolhe as formas?Com mais altaneiro brio, sentida de tais cogitações, responde a moeda a este vosso narrador com uma leve altercação de brilho, Diz-me lá, ó plebeu indefecto, és assim tão mal nutrido de saber que não vês que quem assim brilha foi maior entre os maiores de Portugal, Johannes V Rex Solis Crepuscularis, rei sol à escala dos crepúsculos da nação, obreiro de coutadas e contadas reformas e das bibliotecas do reino, convento memorial? e não te rememorias deste brilho balofo de óbolo por onde não passou morte, parece não ter passado tempo mas vingou o esquecimento, que brilhava bem mais quem com este nome obrou, real-real, viva el rei de Portugal, que é este lanço de Lisboa sítio deles, basta que se deite o olhar me frente para que se divise, coisa difícil mas não impossível e verdadeira, muito realmente, como se dizia, pois, eis o real por todo o lado, a dobra do torniquete da pata direita do cavalo de D. José, coisa populareira, quase como a tabuada, o aprender-se em tenra idade ser a pata direita do cavalo de D. José afinal a que cavalga à esquerda, cavalo de boas maneiras, este de el-rei, despedaçando as serpentes e os távoras que atentam ao paraíso! mas vai já este vosso narrador embalado em outras navegações e em sôfrego exagero, o que se vê não pode ser senão o tendão cavalar dos cascos traseiros do animal, mirando que está com o rei a outra banda do eflúvio, margem sul, na poética do quotidiano, com a memória nos gasolineiros de outrora, submarinos rasteiros à tona de água, mas já lá chegaremos, por agora ainda não vai esta imperial e feminina rua a meio, Augusta de nome e até de traços, se és Augusta és Augusta velha e triste, Será que és tu, velha, que aqui arrebanhas esmolas e esmoleres?, bem o poderás ser a esta primeira e leve impressão, tens um rosto sem idade, como que todas as canseiras do mundo lavradas na cara, pouco urbano predicativo, melhor será dizer que tens os desgostos do mundo esculpidos na face, o brilho que o rex ali da vitrina, aquele que pregou glória e ocasos crepusculares, tem a mais, tens tu a menos, velha, nem uma réstia de luz vítrea tens nos olhos, decerto terás morrido e ninguém to disse.
Podeis ver, pois, que não é fácil a este vosso narrador alhear-se da sua marcha sem propósito e enveredar por detalhes de somenos e somais que postos e entrepostos conduziriam, duvidas onde as existem, ao criar e recriar dos tempos, à primavera do mundo, coisa estranha de se dizer, semear a primavera do mundo na calçada portuguesa e no rendilhado de sombras desta baixa olissipónica onde a última coisa que terá por certo frutificado terão sido aromas orientais e pecados de quem muito ambiciona e pouco comanda, agora o que se colhe, com a conformidade de quem acarta um cancro na consciência são as procissões impensáveis de turistas, senhor D. José, senhor D. Johannes V, ao que este país se resignou, ser Lisboa um miradouro e uma mágoa debruada de Tejo, E o resto mais de Portugal?
- O resto mais, Altezas? É paisagem.