terça-feira, dezembro 07, 2004

Doenças

A julgar pelas notícias de ontem, o atraso do país não é apenas estrutural. É também estranhamente paradigmático e tem na raiz anafada do pensamento político o factor numero um de contraprodução.
Não falando já nesse couto de esperanças abortadas que durante quatro séculos moeu e desmoeu o ego dos portugueses com a mania das grandezas eternas -um sebastianismo gasoso e messiânico que mesmo para mito não deixa de ser de uma paupérrima simplicidade -a análise política e social é, em Portugal, feita nos mesmos trâmites com que se faz a história, versando mais sobre aquilo que é o passado do que concebendo o que deverá ser o futuro.
Quando se escreve fortuitamente - para um blog, por exemplo - uma das técnicas a que se recorre com mais frequencia é a do fingimento: finge-se que é Natal e escreve-se quase como se Natal fosse, o cheiro fingido das rabanadas afogadas em mel, as luzes dispostas em guirlandas como luzecus talhando o escuro no breu da imaginação, a mesa posta com toalha de gala.
Assim fingindo, no dia em que o Natal chega já existe no recheio da mesa de cabeceira um texto com os sabores todos do Natal, a fosforescencia da lareira, o azevinho no canto da sala e a ternura da noite fria...
Com a política e com a justiça - quem duvida que a justiça não seja hoje profundamente política? - o mesmo parece começar a passar-se, a julgar uma vez mais pelas notícias de ontem. Não me interpretem mal, mas a morte de Francisco Sá Carneiro qualquer dia é uma efeméride digna de feriado, o que até nem seria mal pensado, especialmente para os milhões de portugueses que se matam a trabalhar por um salário comichoso e são ainda tributados com o rótulo de pouco competitivos.
Apartando as águas e fazendo colidir os propósitos, sempre que se festeja a morte do dito senhor recuperam-se, com maior ou menor grau de credibilidade, as manobras conspiratórias e a análise política recua efemeritamente a esse tempo dos afonsinhos da democracia portuguesa em que se discutia uma possível integração europeia e em que o país tremia, de vez em quando, com uns tiros e umas bombas e uns murros nas trombas.
Não deixa, ainda assim, de ser estranha a noção de tempo da dita comissão parlamentar que analisa o processo cifrado como sendo o processo de Camarate: será que aqueles senhores estiveram a trabalhar este tempo todo e acabaram o dito relatório com um dia de atraso, desculpável e resoluto? Ou será que escreveram o texto pensando e fingindo, como quem escreve, o Dia em Que Mataram Sá Carneiro?
Seja como for, não importa assim tanto: para quem nasceu no pós Sá Carneiro, os horizontes sobre a figura do político são periclitantes e pouco definidos. Custa, pois, vinte e três anos depois, perceber a pertinência do caso, quando Portugal continua a ser a sombra de qualquer coisa, um ermo sem futuro em que até os cães se passeiam tristes, tanto o passado e o desnorte.