O Deus das Coisas Paradas
Pareceu-me mole farto da última vez que o vi do outro lado do espelho. Tinha o rosto escanhoado, as faces limpas e enxutas, mas nem por isso se lhe sumira das órbitas o olhar anímico e nevoento, como que ensombrombado por uma mácula no tempo, por uma sombra ou uma noite eterna que ali encalhara.
Nos melhores dias subia os caminhos da serra e traçava nos domínios do céu territórios imaginários, fazia das nuvens fortalezas e galeras, cumes inexpugnáveis e fábricas pardas e passava as horas arregimentando exércitos de gotas, gotinhas e gotículas de chuva ou ameestrando os parcos raios do sol de Inverno.
Escanhoado, talvez aquele fosse um dos melhores dias. O habitual nele era esquecer-se de si, deixar a carne embrutecer, passar os dias ocupado até que a dúvida o fazia julgar que ele era também uma partícula íntima do escuro da noite, uma fraga mais no leito do rio. Nesses dias, sentava-se no ultimo degrau da escada e esperava imerso num transe imperturbável por uma resposta que fosse na caixa do correio. Não era raro a noite vir e estender-se sobre as casas com ele ali petrificado, nem um resvalo da íris dentro da órbita, nem a flexão mínima de um músculo. Estava como se houvera morrido ou como se ali não estivesse senão o seu eu invólucro e ele se encontrasse ou desencontrasse algures entre duas folgadas de vento.
Quando era ganapo e se aborrecia ora com o bang bang dos ponteiros, ora com o insosso do gestos dos crescidos brincava desta maneira, ora vendo e revendo as coisas de novo, ora com os óculos da primeira vez, ora com os óculos de abraçar as coisas paradas. Foi assim que se apercebeu que o dedo grande do pé de Dona Caulliflower Guevara era mais pequeno que todos os outros, uma espécie de menos que mindinho responsável pela forma têmpera e fogosa como a senhora se bamboleava e pelos desvarios dai decorrentes em que a fatia máscula da cidade se afundava sempre que o trânsito era o de Dona Flower Guevara.
Assim também se apercebeu do rubor afrontado da viúva Quitas Perozo quando comungava das mãos do prior e do mal de coceira que tirava do sério, nas esquinas das avenidas, o memorável doutor Yatchboat Ortega, velho da idade do século a quem a putaria agradava tanto quanto as gomas e os rebuçados agradam às crianças.
Olhando com os óculos de ver as coisas paradas, o que mais o espantava eram os vértices que desconhecia nas coisas que sempre conhecera: as flores brancas do azevinho escondidas no fim do Outono, os afagos suaves que o pai roubava à cintura da mãe enquanto a louça se lavava, os caracóis que vinham no preâmbulo à madrugada descoroçoar as calêndulas da vizinha, o musgo nos pinheiros apontando o norte, a passagem dos meteoros e o silêncio das cigarras quando eles passam.
Quando era ganapo, muito mais mundo existia mas do alto da sua tristeza, do outro lado do espelho, nada disso ele parece recordar. Há nos seus olhos uma noite eterna encalhada.
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