sábado, outubro 30, 2004

A Natureza e o Mal

Vista do céu a ilha é um nada, uma concha no meio da espuma, o topo de uma montanha que explode em silêncio onde existe só água e sal por milhas e milhas, um iceberg verde e mínimo que se esqueceu de como se navega, tal como os seus homens se esqueceram da moral e da lei dos outros homens. Ou será que não existe tal coisa quanto uma moral universal?
Nas páginas de um livro, Pitcairn é uma aventura fantasiosa, um conto de piratas extraviados, de motins. Uma ilha hollywoodesca de certa forma. Uma ilha impossível, de uma outra. É que nas páginas de um livro, Pitcairn poderia ser também a ilha improvável de "O Deus das Moscas", de William Golding, o laboratório que se julgava hipotético onde a selvajaria brutal se revela plenipotencialmente, muito para além de qualquer noção de moral ou mesmo de humanidade. Longe de tudo, num mundo que se constroi cada vez mais a partir da ideia da proximidade e da homogeneização dos pareceres e dos costumes, Pitcairn é um enclave da humanidade onde a maldade humana persiste naturalmente. E persiste não como um desvio ou uma patologia, mas como regra ou mandamento, lembrando-nos do ténue que é a relação entre o homem e a sua própria natureza. Só sob este prisma podem ser equacionadas as ocorrências de Pitcairn. Seis condenados - um oitavo da população da ilha - asseveram do desfecho de um processo que é em muito um desfecho parcial do que poderia ter sido uma outra humanidade.