terça-feira, novembro 02, 2004

As Bacantes

Um diálogo à distância e os despojos do dia, ténues, morrendo muito além da linha do horizonte, num mar de prata embebido em luar, assim se faz Setembro nas Aldeias da Banda d’ Além.
Setembro é o mês da mão de deus. A paragem abençoada no adeus ás noites longas, uma fogueira serenando a madrugada e a paz no coração dos homens, no rescaldo das desfolhadas. Rostos disformes, estes, pintados pela penumbra das labaredas que dançam na fogueira.As mulheres, que não têm o coração fundo e fingem compreender o mistério da lua, sentam-se a um canto e entretêm-se com frivolidades, gabam os maridos e os filhos e esquecem que só a lua, na trégua de Setembro, como a Iemanjá dos saveiros, é mulher e mãe. Só a lua é o milho desfolhado, milho alimentado a suor, é a fogueira, uma outra lua pequenina, com um luar pequenino entristecendo os homens.; só a lua é mulher e mãe, enchendo de paz a languidez da noite.
Uma garrafa de aguardente, empalhada a vime, passa de mão em mão, de boca em boca, e sossega no regaço do contador de histórias: não aportará a outras bocas sem que a história acabe.O contador de histórias tem ainda sobre as costas a manta do feitio do arco-íris com a qual incorporou o Serandeiro. O Serandeiro, a sua história das mais tristes que se possam ouvir, é presença certa nas noites de Setembro: aparece por entre uma raleira de luar, quando a lua se distrai, a meio das desfolhadas (assusta as crianças pequenas, com as pálpebras inchadas de sono) e procura nas presentes, uma Bacante, que lhe retire com um sorriso a rustição, o fado triste de ter que perseguir a lua, mulher e mãe, destroçando os milheirais, nas noites de Sabbat, nas noite em que as Bacantes se reúnem para dançar e amar.Do Serandeiro, já há muito, nada se ouve. Aparecem Serandeiros de enganar, como o contador de histórias, escondidos sobre mantos de lã do feitio do arco-íris com o propósito de lembrar o outro, o que destroça os milheirais por maldição. O que tendo encontrado as Bacantes dançando, os seios rosados e o corpo nu, orvalhado, reflectindo o calor da fogueira, a elas se juntou e as amou a todas, perdendo para sempre a alma, o sossego e o coração, na noite de todos os equívocos: o de estar no sítio errado, no momento errado e o desejo errado de beber loucura nos lábios das Bacantes, no corpo molhado sob as luas cheias de Julho.
O contador de histórias é um livro sem fim. Entre um trago de aguardente confessa que as Bacantes lhe vêm bater à porta. As mulheres, que não têm o coração fundo, sossegam a voz e guiam para o contador de histórias, os olhos alvoraçados. O contador de histórias, que não quer destroçar os milheirais às gentes que trabalham, não lhes abre a porta, nem lhes quebra o segredo, espalhando-o aos quatro ventos, porque as Bacantes, não sendo mulheres nem mães, como a lua da mão de Deus, também têm poder: o da loucura sobre os homens.
O contador de histórias é um rosário sem fim. Não conta só histórias. Cara magra, cerzida por muita desventura, muito sol, muito dias iluminando-lhe os olhos icterícios. Se a alguém a lua, mulher e mãe, castigasse com um mal de amor, um "cabranto", um tesorelho, uma varicela até, o contador de histórias, que conhecia todas as curvas ao corpo da mulher e mãe de todas as coisas e lhe lia no luar, como quem lê nos olhos de uma mulher a ansiedade e o desejo, murmurando uma arte antiga que lhe viera do pai, do avô, do princípio dos tempos, afasta o mal em ritual estranho onde se misturam o respeito e a crença.Eu próprio, era o contador de histórias quase tão velho como o século, enforquei um quebranto (o contador de histórias murmurando baixinho palavras de outros tempos) numa carvalha cerquinha, às primeiras horas da manhã, o sol irrompendo, coroando as copas das árvores com uma luz baça.
Porque o inverno da vida não perdoa, o contador de histórias deixou a Banda d’Além e agora conta histórias, por certo, à lua, mulher e mãe, segredando-as baixinho como quem reza. Talvez o seu sussurro seja o vento fraco que o luar do mês da mão de Deus traz pela mão.Foi numa noite de Janeiro que o livro sem fim do contador de histórias se fechou, que as contas do rosário do contador de histórias se despedaçaram em memórias baças que cada um guarda das noites de lua cheia do mês da mão de Deus, em que os homens de coração aberto bebiam aguardente junto ás fogueiras e ouviam histórias extintas, porque existiam só no sangue e no saber do contador de histórias.Morreu o contador de histórias. Como se diz nas planícies incautas de África sempre que um contador de histórias se junta à lua, mulher e mãe, ardeu uma biblioteca. Têm as Bacantes o descanso merecido, sem portas mais onde possam bater.