domingo, novembro 14, 2004

Faina Fingida

Muito espaçadamente continuaram a entrar pelas águas dentro. Quando alcançavam as espumas ao largo faziam que deitavam redes às profundezas, gritavam as rezas da faina e trovejavam contra toda aquela imensidão, os anos de sal e as noites de vigília agarrados aos remos.
A quase todos não chegavam os dedos das mãos para falar das vezes em que a fúria das cristas os arremessara para o temporal convulso e não bastava a coragem da sobrevivência para recordarem todos os nomes que se escondem no escumalhal da rebentação.“ O mar não tem cabelos”, repetia o Soito antes de despedaçar as vagas com um puxão de braços.Os outros assentiam e olhavam para o largo, marcando com o olhar pedaços imperceptíveis da imensa vastidão, como se todo aquele verde fosse um berço e um sepulcro e fosse possível apontar de onde a onde, como num mapa escorreito em tragédias, os dias e as ondas do infortúnio: o Zé Bravo ao fundo, o Miqélense mais adiante, o Potro ao alcance de uma mão e muitos, mais do que alguém de memória farta possa cuidar, na ânsia do mar para além da demarcatura do horizonte.
À proa, entre duas ripes travessas onde ia parar o pescado nos dias cristalinos da estiva, os ingleses, dentro de impermeáveis alaranjados, amofinavam-se ao sôfrego balançar da pequena embarcação e olhavam para as ondas mais com despropósito do que com respeito.A ele, o mar desaconselhava aventura: os olhos amarelos e cândidos deixavam adivinhar a convulsão visceral e a fraqueza das tripas e do espírito. Ela mostrava uma imunidade pouco habitual ao pendular e ao revolver do barco, quase como se as vagas fossem um imenso carrossel de vento e de espuma e a pradaria oceânica a mais excitante das ousadias. A intervalos curtos, quando o bote granjeava uma onda mais densa, ela ria e repetia com um fervor inusitado, “Hou mai gaad! hou mai gaad!”.
Os homens riam também, agarrados à mecânica dos ramos e com os olhos no inglês encardido e frouxo, debilitado pela fúria dos seus próprios humores, gritavam alto para que o oceano todo ouvisse,- Eh, Mestre, esta está a precisar de um home a sério. De um que lhe carregue com quantas cargas tem o mar..."
O Soito respondia com palavras breves, quase murmuradas, “O que se quer é que pague”, e olhava para ambos os bordos, o bom e o do estio, e para o lençol imenso em que a barca se embrenhava e cuidava para si que as mulheres no mar são um perigo, a perdição dos homens, que a única coisa que regenera um homem como a calma e o sal do mar é a pele e a ternura de uma mulher e perguntava para si já com o mesmo enlevo fantasioso dos companheiros que pele e que calma se esconderiam para além daquela excitação pecaminosa, dos cabelos revoltos, de todos os mares e de todas as mulheres.
No antigamente, das redes cheias e das noites enoveladas e enfaíscadas em aguaceiros e relâmpagos, essas noites que cavaram nas vagas imensos cemitérios sucintos, o mar era o mar e as mulheres as mulheres e a uma única – a dos Navegantes – se pedia que galgasse com eles as ondas da partida e do regresso e enchesse as cestas e as canastras com algo mais do que esperança,- Mar salgado e desgraçado, quanto deste teu sal são lágrimas de Portugale ia acabando Soito com tais cogitações numa única e imensa mágoa e querendo para si que todo o mar é um lamento quando o mal de mar do inglês se quebra numa palidez mortiça e em golpadas incessantes de vómito e a inglesa deixa de dizer “mai gaad”, ou se o diz é por distintas razões, deixa de sorrir e quase que transforma a aflição numa ordem e a barca recua no percurso das ondas e toma a terra por sentido e a espuma da rebentação por destino.
O regresso vinha durando um nada. As cristas do fim da tarde são frágeis e pouco têm do assanhado do mar. Em pouco tempo se fizeram na costa, o inglês cambaleante e diluído e os homens com um quê de troça arredondando o traço dos lábios. Enquanto puxavam a embarcação para o areal, o Mestre foi buscar um copo de água açucarada para repescar no que ia restando do enjoo o ânimo do inglês: o homem emborcou a água em tragos ligeiros e aos poucos vestiu outra vez cores de carne e alguma compostura. Levou a mão ao bolso e de lá tirou trinta contos que deitou nas mãos do pescador, antes de se sumir pelo areal, agarrado à companheira e à brandura da brisa.
O pescador deitou olhos à ilharga, onde deixara, ao sabor da correnteza, as redes imaginárias com que pescava memórias e mágoas. O sol morria sem urgência sobre o horizonte. A meio-mar uma traineira de outras águas cortava as vagas. Tinha no casco, a letras douradas, “Huelva y Anunciación” e a indicação no pavilhão de que era europeia e infinita. Soito meteu o dinheiro ao bolso e sem raiva nem ternura excomungou a vastidão das águas e os seus novos cruzados de sempre,- Filhos da puta, roubaram-nos a pátriaAo seu lado, no casco do bote, um cartaz pregado convidava:“Ingresse connosco num dia de pescaria. Conheça o mar sem cabelos da faina de Portugal. 150 euros. Desconto para casais"