O Caima (sem celulose)
Quando as preciosidades não são valorizadas, acontece que acabam vulgarizadas. Se de um aforismo tal constatação se tratasse muito de precioso existe nos nossos dias que ignoramos mais por infelicidade própria que por desconhecimento, mais por ignominia do que por desmazelo. O Caima é uma preciosidade. Explique-se: como todos os rios e todas as correntes, o Caima tem duas vidas. A primeira conflui num correr sossegado, num regatear brando, na sombra aconchegante dos amieiros e das avelaneiras, no coaxar esparso das rãs, nos espelhos de água que se multiplicam ao longo de parcos quilómetros, no bel prazer e na sedução.
A outra, a segunda, é mais enfadonha e muito menos radiante, remete para o rio causticado pelo Homem, na marca da cidade e do império fabril no tom terroso e acastanhado das água, na ausência de calma e de transparência, a luz dilacerando a corrente, ofuscando o leito, o Caima depois de Cambra, o Caima depois de Azeméis, o Caima depois do Homem.
Acontece ao Caima ser um rio vulgar, tão vulgar quanto todos os outros com as mesmas pústulas e as mesmas cicatrizes. Ao menos no que concerne ao troço de rio que corre da praia fluvial de Burgães para baixo em direcção ao Vouga; de Burgães para cima, até essa coisa medonha e majestral que é a Frecha da Mizarela, o Caima é uma universo à parte, um ecossistema riquíssimo e variado que o homem condenou, por esquecimento deliberado ou por expedita cegueira a uma trivialização progressiva: há pouco mais de três décadas, do correr em bruto do rio bebiam os rodízios dos moinhos, a água do Caima funcionava como força motriz para a moagem de cereais e os açudes que alimentavam o engrenar das mós de mais de quase duas dúzias de moinhos eram como viveiros naturais onde espécies como a truta, a boga e o bordalo pontificavam aos milhares. Pelo leito do Caima não corria apenas um rio em seu curso, corria um sem fim de vida.
Com o declínio da agricultura e as facilidades concedidas pelos meios e vias de comunicação, certos gestos, certos hábitos, certas necessidades perderam o sentido de que outrora se revestiam: o milho, aos alqueires, deixou de ter os moinhos por destino, os rodízios pararam de girar, as mós de matraquear. Com os anos, o Homem voltou as costas ao rio e os telhados dos velhos moinhos afundaram-se sobre si próprios até ruírem, as paredes dos açudes abriram frechas, em dias de temporal desabaram e acabaram por seguir a força da água no seu curso. O rio, diga-se, nunca mais foi o mesmo.
A outra, a segunda, é mais enfadonha e muito menos radiante, remete para o rio causticado pelo Homem, na marca da cidade e do império fabril no tom terroso e acastanhado das água, na ausência de calma e de transparência, a luz dilacerando a corrente, ofuscando o leito, o Caima depois de Cambra, o Caima depois de Azeméis, o Caima depois do Homem.
Acontece ao Caima ser um rio vulgar, tão vulgar quanto todos os outros com as mesmas pústulas e as mesmas cicatrizes. Ao menos no que concerne ao troço de rio que corre da praia fluvial de Burgães para baixo em direcção ao Vouga; de Burgães para cima, até essa coisa medonha e majestral que é a Frecha da Mizarela, o Caima é uma universo à parte, um ecossistema riquíssimo e variado que o homem condenou, por esquecimento deliberado ou por expedita cegueira a uma trivialização progressiva: há pouco mais de três décadas, do correr em bruto do rio bebiam os rodízios dos moinhos, a água do Caima funcionava como força motriz para a moagem de cereais e os açudes que alimentavam o engrenar das mós de mais de quase duas dúzias de moinhos eram como viveiros naturais onde espécies como a truta, a boga e o bordalo pontificavam aos milhares. Pelo leito do Caima não corria apenas um rio em seu curso, corria um sem fim de vida.
Com o declínio da agricultura e as facilidades concedidas pelos meios e vias de comunicação, certos gestos, certos hábitos, certas necessidades perderam o sentido de que outrora se revestiam: o milho, aos alqueires, deixou de ter os moinhos por destino, os rodízios pararam de girar, as mós de matraquear. Com os anos, o Homem voltou as costas ao rio e os telhados dos velhos moinhos afundaram-se sobre si próprios até ruírem, as paredes dos açudes abriram frechas, em dias de temporal desabaram e acabaram por seguir a força da água no seu curso. O rio, diga-se, nunca mais foi o mesmo.
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