domingo, setembro 18, 2005

Imagens e Ecos

Porque será que as coisas, quando nossas, vistas pelos olhos dos outros se revestem de uma roupagem mais convincente? A Standard Weekend, revista que acompanha a edição de sábado do diário de Hong Kong The Standard dedica três das páginas da edição de ontem ao rumor perfeito e apetecido dos eléctricos de Lisboa, personificados no vagar genuíno com que o 28 se lança à ilharga pelo coração de Lisboa a partir do Martim Moniz.
Barry Hatton, repórter da Associated Press autor da crónica lisboeta, sublinha a centralidade da noção do vagar delicado com que o 28 traça diagonais pelas colinas de Lisboa, ora subindo até ao Largo da Graça, ora regressando ao veio rasgado na topografia de Lisboa que é a Almirante Reis, o Intendente, o Martim Moniz, o Rossio.
Leva noventa anos e muita história transportada, o 28, e é como que uma reminiscência do passado que se faz válida todos os dias. Numa cidade que se quer modera e pressurosa mas que veste com algum incómodo um perfil arquitectónico e urbanístico que se coaduna mais com o passado do que com o futuro, o único rasgo de Lisboa onde persiste ainda alguma genuinidade é no vagar quase adstringente com que os eléctricos de Lisboa vão cruzando as encostas e as praças, à sombra de telhados e de prédios esfarelados que se despenham numa parda ilusão sobre o mar da Palha, sobre o Tejo.
À Lisboa genuína é impossível não remeter outro discurso que não o discurso do elogio. Das calçadas abruptas, das muralhas do castelo, dos miradouros, do rendilhado refinado do casario, da destreza dos olhares que espreitam pelas janelas, da alma da cidade ululando ao vento no estertor dos estendais, do vagar do vinte e oito (um oásis de calma no coração da cidade).
Maria Emilia, reformada, vive hà mais de trinta anos tendo por vizinha a catenária do eléctrico. Raro é o dia em que o 28 não a leva ao coração da cidade.
"Os eléctricos andam carregados de memórias", diz ao repórter britânico.
"Tenho pena que os mais novos andem sempre com tanta pressa. Perde-se muito quando se anda depressa demais", conclui.
Perde-se tudo quando se anda depressa demais. A outra Lisboa, moderna matrona cívica, caudilha dos poderes democráticas e económicos é abominável, castradora, impía, movimenta-se a uma cadência sórdida, dir-se-ia sem um norte definido, procurando parece (descontente) querer ser tudo menos aquilo que ainda vai podendo ser.
A essa, acho que a desprezo. À Lisboa que fez do Bairro Alto um território avant-garde de costumes experimentalistas, de extravagâncias, um palco de desafogo, de escape. A Lisboa que extirpa o resto do país de gente e de valias por nela concentrar o mais das oportunidades (muitas vezes nem boas oportunidades são). A Lisboa autista, que descarrila sobre si própria as necessidades mais prementes e se agiganta à medida em que tudo o mais desvanece. A essa desprezo-a.
Mas desprezá-la não é de todo desprezá-la, percebo agora. É remeter contra a couraça da cidade o desânimo sobre as pessoas, é odiar em sinédoque, tomar o todo pela parte. É culpar Lisboa por um Carrilho ou por um Carmona, pela política conduzida. Pelo recheio do edíficio de São Bento. Pelo desnorte do país.
Lisboa não tem culpa. Lisboa merece mais. Merece sardinheiras nas varandas, uma mão de pintura, roupa nos estendais. Merece crianças nas ruas da Mouraria, bancas de pintores no Rossio e floristas no Martim Moniz. Que a Feira da Ladra perdure, que as colinas se iluminem, que o eléctrico tome devagar, num acto de amor, as encostas da Graça. Lisboa merece que ninguém se esqueça de quem Lisboa é.

1 Comments:

At 7:02 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Eram 7.34 da manhã quando li este post,há dois dias atrás...seriam dois ou três dias?O tempo parece efémero na correria constante por desta cidade...Quis deixar o meu comentário,mas não encontrei palavras para descrever o quão tocante o mesmo foi para mim...lá fora o sol raiava por entre a massa de betão desta Lisboa cinzenta que se avista da minha janela...Eu gosto de Lisboa, mas a Lisboa perdida por entre becos e ruelas, a Lisboa dos bairros, a Lisboa do beira-rio.A Lisboa onde vivo é fria, é apenas mais um rectângulo de betão onde as pessoas regressam findo o dia,e onde todos são anónimos...Hoje passeei pela minha Lisboa,e agora sim...sinto-me mais feliz e capaz de escrever algo

 

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