O Bem de Todos
Em última análise, na questão da disciplina dos espaços públicos, uma solução eventual podia passar pela punição efectiva de tais melindres do carácter português: o cuspir para o chão, o abandono dos restos do farnel familiar naquela curva da estrada ou do cocó do cão no areal talvez passassem a ser actos olhados com algum desdém se custassem dinheiro aos portugueses.
O príncipio do ïnfractor-pagador" é encarado, no campo da disciplina criminal como normativo. Quem comete um crime, contra outrém ou contra a sociedade deve, de acordo com os códigos processuais vigentes, "pagar pelo mal feito" ora pela privação das liberdades fundamentais, ora pela prestação de uma série de gestos e de condutas que funcionam como termo ilibatório.
No âmbito da disciplina cívica, as coisas deveriam, caso existisse algum príncipio de similariedade válido (e rígidido) funcionar de forma idónea. Mas a simples constatação, de uma lóica quase aritmética, que o príncipio da punição é por si mesmo uma possível solução para incutir, ao menos, nos portugueses o dom da ponderação e do agir reflectido (pensar nada custa, mas lançar um papel para o chão bem que poderia começar a custar alguma coisinha) é por si mesma, a constatação de um nado que nasceu morto.
Três são as razões que assim o premeditam, que forçam a ideia a abortar ainda na sua génese. Por um lado existe o paradigma das estruturas. A adopção de uma tal regulamentação teria que partir do pressuposto de que as possibilidades logísticas se encontram distribuídas de forma idónea entre todos. Tal seria conceber um sistema estruturado e viável de recolha de lixo, de saneamento público, de ordenamento urbano. Tal seria pressupor que desaparecessem de qualquer aglomerado populacional - urbano ou rural - os fios de electricidade cruzando os céus, as linhas telefónicas dependuradas de frageis tótens de madeira e presumir que não existem (como Lisboa parece presumir) uma série de disparidades fundamentais no ambito das coisas mais simples. Talvez o facto que melhor exlica por que razão uma grande parte dos portugueses continuam a deixar o lixo na borda da estrada seja unica e estritamente a ausência. Como alguns moram a dezenas de quilometros do caixote do lixo mais próximo, a solução de recurso acaba tambem por ser a mais fácil: varrer o pó para debaixo do tapete e esconder os velhos electrodomésticos sobre a verdura marginal.
O segundo motivo que poderia premeditar a inviabilidade de uma decisão da índole ganha substância na extrema permissividade e dormência com que os portugueses olham para as coisas. A passividade é uma espécie de herança genética no que concerne a mudanças sociais.
O português típico prefere esperar que chova, espera que reverdesça, esperar que alguém dê uma mão ( na esperança que se transforme em duas) mas raras vezes se lembra ele próprio de plantar uma árvore, de limpar uma nesga de chão. Vive firme, o português, na convicção de que se ele não se aprestar a fazer as coisas, alguem as fará.
Mas o terceiro motivo é o que mais preocupa. Prende-se com a deturpação voluntária do pensamento político. Não há português que acredite que isto de se viver em democracia é uma valsa a dois andamentos: os dos direitos e dos deveres. Do alto do premeditismo egocêntrico em que vivem, os portugueses apelam sempre, sempre aos direitos que têm e raramente se recordam que também tem deveres. Para consigo mesmos, para com os outros e mesmo para com a figura do Estado quando não ultrapassa a figura e o preceito institucional que o justifica: o de solicitador do bem comum.
A maior parte dos portugueses, claro está (os que não têm caixote do lixo à porta, por exemplo) não iriam perceber por que razão teriam que pagar por lançar um papel para o chão ou por cuspir ou por fazer o que quer que fosse. Afinal sujar é também um direito. Dos muitos que se ganharam com a tal Revolução.
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