quarta-feira, agosto 17, 2005

Que badalhocos, senhores!

O calvário dos fogos que deixaram, no rescaldo do pico do Verão, um país calcinado e horizontes de cinza (em alguns lados) por onde quer que a vista se passeie não espalhou, ao que parece, apenas a devastação pelo país. A julgar pelo que se escreve nas páginas dos jornais e em alguns blogs ditos de peso no âmbito da blogosfera portuguesa, as " ignições" - termo político e ilibatório para atenuar a magnitude do problema recorrente em que os incêndios se tornaram - semearam também, no fértil domínio dos intelectuais da nação, a idiossincrasia do autismo.
Vital Moreira, no "Público" e Paulo Varela Gomes, em qualquer outro lado, fazem desta feita a apologia de que a falta de consciência ambiental dos portugueses é um dos combustíveis morais da onda de incêndios que meia volta deixa Portugal assim, a negro carbóneo e triste.
Varela e Moreira, observadores anónimos dos hábitos dos portugueses, com uma sociologia muito própria, descobriram aquilo que os portugueses sempre souberam sobre si próprios, com a nuance de que os portugueses estão um patamar acima na gnose de si próprios.
Os portugueses sabem que velhos hábitos custam a morrer. E os velhos hábitos não são apenas os que concernem os hábitos ambientais (algo volumétricamente novo no catálogo dos deveres do portugueses, habituados desde sempre ao desenrasque mais que á civilização), mas os que concernem ao respeito por valores mais relevantes, como sejam os ideais políticos de cidadania ou sócio-políticos de comunidade.
De certa forma, há nesta atitude dos portugueses um demissionismo concreto que resulta em muito da questão da inviabilidade do país. Como é que um país pouco mais que minúsculo, com dez milhões de almas cordatas, sem problemas de índole política que apontem ao conflito, se pode revelar virtualmente um ermo ingovernável?
Se perguntarem aos portugueses e os escutarem sem a punção libatória de os caricaturizar em seguida, eles vos dirão que na política portuguesa há uma dose de autismo tão exponencial que parece genéticamente herdada do sebastianismo derramado em Alcácer Quibir. Os políticos portugueses, todos - independentemente do espectro ideológico de que se dizem concebidos - julgaram que a construção de uma malha de asfalto e de autoestradas poderia lançar o país na senda do desenvolvimento e que a subida dos preços para níveis europeus situavam o país alguns graus a menos na periferia da Europa.
Perderam-se na megalomania de uma Exposição Universal e no colorido de um Europeu de Futebol e fecharam os olhos às lacunas estruturais que o país apresenta. Um país envelhecido, com o interior votado ao abandono, que tornou a simplicidade de uma infinidade de coisas num sarilho de burocracias, que se deslumbrou perante o dinheiro de Bruxelas e se deixou entregar a uma certa lascívia imanente ao novo-riquismo esbanjador, julgando de si mesmo que no futuro tudo se conjugaria com a toada da prosperidade.
De um mesmo autismo parecem padecer os analistas do país. Bem, talvez não seja autismo; talvez seja apenas Síndrome de Lisboa. Seja qual for a patologia, os sintomas apontam para um desconhecimento efectivo do quotidiano de uma grande parte dos portugueses.
Dos portugueses que deitam móveis velhos e electrodomésticos pelas ribanceiras porque se cansam de esperar pelas promessas eleitorais, pelos políticos que dizem de quatro em quatro anos que é no mandato subsequente que terão um caixote de lixo à porta, para que os dejectos domésticos possam ser recolhidos uma vez a cada quinze dias.
Dos portugueses que fazem coisas criminosas como perfurações ilegais ou poços não regulamentados, ultrapassando diplomas e convenções, apenas porque essa é a única forma de conseguir ter água a correr das torneiras por não existir uma solução municipal nesse sentido.
Dos portugueses que não percebem porque é que, existindo uma reserva agrícola nacional, por vezes é tão díficil fazer algo tão simples como semear e colher no seu perimetro ou criar com a foragem dela resultante meia dúzia de cabeças de gado.
Se os portugueses se demitiram das suas responsabilidades em matérias tão simples como sejam a consciência ambiental ou o respeteito pelos outros, não foi apenas um ar que lhes deu. Afinal, o exemplo vem de cima. Se os governos se têm demitido de Portugal, que razão têm os portugueses para não o fazerem?