sexta-feira, março 04, 2005

Dos significados do frio


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Da solidão se ampara o frio ou ambos se fazem um, como se não existissem caldas solidões. Eis pois a voz dos poetas confrontados com a instância polar do Inverno no reverso da pele, no âmago da criação, no berço da linguagem. Que na rua se diga da velhice ser o inverno da vida ou que se acusem os reservados e os sérios de semblante de serem frios, pouco haverá a refutar pois a língua é na sua concretização mais natural como a agua que se molda aos refrêgos do solo e das encostas. Aos poetas ninguém há que se atreva a por em causa o que quer que seja; acto maior da expressão da liberdade, a poesia colore mais que as essências todas do mundo, que o pastel e a urzela, que o anil e o açafrão e inaugura sensações, leves ou densas, que nos situam face a tudo que nos rodeia com uma predisposição filológica, quase moral. A poesia predispõe-nos para amar, para querer, para possuir, para o quartzo e para a nuvem, para o frio.
Para o frio. Para o frio a poesia relega o lugar efémero ou eterno da ausência, uma solidão que se torna palpável e lânguida porque fria. Em Sophia por exemplo:

"No ponto onde o silêncio e a solidão
Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
Tão nítido e preciso era o vazio."

Outros como Alberto Caeiro, no tom submisso de humildade que lhe é característico, não povoam o lugar poético do frio nem com demónios, nem com rituais de ausência, nem com nada que não seja o frio exorcizado, só o frio, natural como todas as outras manifestações,

"Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,
Porque para o meu ser adequado à existência das cousas
O natural é o agradável só por ser natural.
Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,
Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno,
Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,
E encontra uma alegria no facto de aceitar
No facto sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.

Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece
Senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida?
O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,
Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime,
Da mesma inevitável exterioridade a mim,
Que o calor da terra no alto do Verão
E o frio da terra no cimo do Inverno.

Aceito por personalidade.
Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,
Mas nunca ao erro de querer compreender demais,
Nunca ao erro de querer compreender só corri a inteligência,
Nunca ao defeito de exigir do Mundo
Que fosse qualquer cousa que não fosse o Mundo."
Em nenhum existe pois o frio lugar não estático, lugar aprumado, lugar presente, farto em vida e em bondade. Mesmo quem ama, ama o corpo quente, o inferno da pele, o brasume quase extinto dos lábios.
Como será, pois, isso de se amar o corpo gélido de uma mulher?