segunda-feira, janeiro 31, 2005

A Livraria Ideal (tomo 2)

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É bom que se evitem os equívocos: Olivier Rolin não quer para si a condição de viajante-escritor. Atestado liminar na abordagem primogénita que o autor faz ao leitor que embarque em "O meu chapéu cinzento", a renúncia ao clube daqueles a quem o horizonte chama revela uma insuficiência paradoxal quanto à fluência e à força daquilo que é, em Rolin, farto e essencial: a sua escrita.

Negue mil vezes o lugar apetecível da partida e os passos nem sempre seguros da demanda, Olivier Rolin viaja e escreve. Bem. Magnificamente. Com a precisão sensata dos marinheiros habituados e sem a sindicância dos lugares-comuns, sem superfícies que se abismam no tomo do irreal, Olivier Rolin absorve aos portos que o acolhem e às veredas que o abrigam a simples radiância do que existe e daquilo que encontra no que existe um prolongamento tangível de existência.

Nove viagens - tantas quantas a edição portuguesa da obra contempla - confirmam que é, sobretudo, ao viajante que cabe a nunca fácil tarefa de denotar o essencial e de extremar os traços de carácter que fazem de cada destino ou de cada caminho que se cruze, uma porta que se abre sobre o desconhecido, uma possibilidade que se expande sobre a própria expansão possível dos universos próprios aos lugares e às pessoas, ao viajante e ao anfitrião.

Rolin - lido o livro, poderia dizer-se - procura nas suas viagens mais do que aquilo que os olhos lhe podem dar: procura uma alma palpável e visível, uma dignidade outra que não a dignidade banal da fruição da chegada ou da tarefa que se fina. Os seus olhos não prescrutam apenas o visivel, nem esmiuçam ao pormenor o acessivel; são antes olhos que abraçam.

Abraçam a memória, os rostos, as ruas, o carácter e os rasgos de transcendência que é possível abraçar, de tal forma que há uma assimilação essencial da metafísica elementar de tudo o que existe, seja esse tudo o esqueleto, requebrado por lambidelas de fumo, dos armazéns do Chiado ou as igrejas intemporais da Velho Goa ou os ossos abaulados de uma baleia ou ainda (e simplesmente) uma batata grelada: "Semivazia, coberta por uma pele flácida de testículo velho, mas projectando para fora dela, envolvendo-se nela, alimentando-se dela, turgecências cor de larva de insecto, tentáculos passando por todos os esverdeados e malvas cadavéricos, essa coisa digna dos pincéis de Greco e de Goya..."

Existe, pois, nas itinerâncias de Olivier Rolin uma clarividência vasta e de certa forma erudita, que tem no exercício da observação a mais fascinante das condutas: o autor é um jornalista sem as pretensões do jornalismo, que supera todos os lugares comuns que a contemporaneidade impõe e relocaliza ao estímulo primordial o essencial no acto de viajar: viajar é, pois, confrontar-se sem cessar com situações, costumes, coisas novas. Por vezes, é apenas reaprender a olhar o que existe com uma inocência sacripanta que faz de todas as coisas, coisas novas, pássaros que enfeitiçam de simplicidade todos aqueles a quem o horizonte chama.

A ler: Rolin, Olivier, O Meu Chapéu Cinzento, Colecção Pequenos Prazeres, ASA Editores, Porto;