Santo e Senha
Vão cuidar vocês que é conversa de ressabiado. Dantes o vulgar era que a miséria ou a soberba viesse bater à porta: por muito que se faça a apologia da dádiva, quase ninguém fica radiante quando um desconhecido lhe bate à porta e quase exige uma esmola, ora para alimentar uma catrefada de filhos quase sempre estropiados, famintos e doentes, ora para regressar ao longínquo país de origem.
Não é que eu queira com isto repudiar o potencial da generosidade humana ou reduzir misericórdia de quem dá ao ímpeto da coacção, mas ninguém gosta de dar quando a liquidez das intenções é dúbia. Nesses casos, quem dá, incorre no gesto mais por descarga de consciência ou por caridade religiosa do que própriamente com um interesse convicto na misérrima balada com que quem pede justifica o acto e o argumento.
Há, nesta abordagem, um certo parasitismo sem escrúpulos tolerado, que se suplanta a si mesmo em irrazoabilidade pelo facto de que o acto de doar surge quase como mecanismo de disuasão de outros actos, prováveis e potenciais, se a oferta não for concretizada; a situação encontra um paralelo óbvio na moeda que o automobilista dá ao arrumador de carros para que ele não lhe risque a viatura.
Embora esteja certo de que a medida agradaria a muita gente, este texto não perfaz nenhuma apologia do extermínio dos mendigos, pedintões e outros que tais, nem da sua clausura (como fazia Salazar) num estádio de futebol, para que o país transparente e farto das campanhas publicitárias conserve a aura de preciosismo à custa da censura à muita miséria humana que ainda por aí existe.
Mas este texto, já se disse - outro poderá vir que enverede por uma tal temática - não é sobre a mendicidade. Se antigamente essa forma de "parasitismo" (os apologistas do "políticamente correcto" estão agora putos da vida com a escolha da palavra) social andarilhava de rua em rua e flanqueava todas as casas, nos dias de hoje o parasitismo chega por telefone, bem vestido e muito yuppi.
É verdade que nem num caso, nem em outro nos vemos obrigados a ceder aos esmoleres ou a aturar as patranhas de quem telefona, mas não é nada agradável receber dois e três telefonemas por semana com alguém a querer falar com o titular da assinatura telefónica a propósito de um estudo de mercado sobre um novo produto ou da fabulosa oferta de um serviço de jantar ou de um colchão ou do caramba.
Não é nada agradável, porque, antes de mais, o trinir do telefone é um estímulo um pouco mais eloquente do que todos os outros: a finalidade do telefone, no reduto da privacidade e da intamacia, é a de comunicar, na acepção original de colocar em comum aquilo ou aqueles que comuns já são. Quem tem o aparelho no domícilio usa-o sobretudo de acordo com os seus interesses e, ao menos no que me consta, não tenho interesse nenhum em que me telefonem para casa na tentativa de compunção de um colchão.
Sempre que o telefone toque, eloquente e sóbrio, a esperança é que do outro lado da linha esteja uma voz familiar, reconfortante, absoluta. Quando do outro lado fala uma desconhecida, a pretender dois minutos do meu tempo, apetece-me sempre crachar com o telefone no auscultador. Por uma estranha fraqueza nunca o faço. É nisso que resultam os excessos da boa educação e das linhas da conveniência, o ter que engolir situações desagradáveis ou inconvenientes em troca da brandura dos costumes.
Uma vez terei heroicamente passado das estribeiras. Foi com uma menina de voz rouca que, após um quarto de hora de sucessivo indeferimento, me tentava mostrar todas as vantagens da subscrição de um cartão de crédito que, alegadamente, concedia aos seus titulares vantagens em tudo e mais alguma coisa no que se reporta à fruição quotidiana da cidade do Porto.
Para me convencer, a menina rebateu o meu cepticismo com o genial argumento de que aos titulares de tal cartão o usufruto dos cacifos para bagagem na Estação de São Bento resultaria totalmente gratuito. Pensei seriamente em mudar-me, de armas e bagagens, para um dos referidos compartimentos, um centavo de assoalhada com localização central na capital do Norte. O problema, claro está (e não duvidando das prováveis e possíveis qualidades do cartão), reside num nadazito: a minha vivência do Porto estava a anos luz de ser quotidiana e como a menina insistia, recomendei-lhe meigamente (para não ser inconveniente, mandando-a de volta à mãezinha que a pariu) uma mudança de vida, em que pudesse fazer algo útil sem enganar as pessoas. E desliguei.
Vim a descobrir posteriormente que é possivel abreviar de forma substancial, sem se ser socialmente inconveniente ou mal-educado, uma conversa desta índole. O "santo e senha" para tal está numa única palavra: "desempregado".
É assim que tudo se processa: o telefone toca, corre-se para o telefone, levanta-se o telefone,
- Estou, sim?
- Estou... Boa Tarde! Fala o titular da assinatura telefónica?
(esmorece o entusiasmo)
- Fala sim...
- Eu faço parte de uma empresa de estudos de mercado e se fosse possível...
(apetece mandar a menina à merda, dizer-lhe "Olhe lá, sua vaca..")
- Olhe, minha senhora, desculpe... Mas estou desempregado...
- Ah, está desempregado... Então lamento mas não se enquadra.. Boa tarde.
(desligam do outro lado)
- Boa tarde, passarinho. Vá lá embora e faça favor de não voltar a ligar..
Com desempregados ninguém quer nada, isso é certo. Nem o governo. Por isso é remédio santo, tónico cerebral, elixir das boas conveniências a antecipação da sentença: sou desempregado. Dize-lo acaba por evitar que sejam expelidas as coisas mais atrozes que se pensam. Para que não rematem este texto dizeres ordinários e brejeiros, aqui fica, em estilo almadiano, os mais delicados pensamentos que perpassam quando o telemarketing está no ar:
"Abaixo as empresas de telemarketing. PIM.
Abaixo as meninas que lá trabalham. PIM.
Abaixo a usura e os Dantas que se aproveitam.
Abaixo a PT e os números dissimulados.PIM
As meninas do telemarketing têm a vagina ao pé da boca.
Morram as meninas do telemarketing. Morram.
PIM."
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