quarta-feira, janeiro 05, 2005

Noite de Reis

Acabei de descolar de há muitos, muitos anos atrás, de uma memória guardada, de um sopro de ontem. Hoje, o tempo parou para uma noite de anto: a modorra da fogueira arvorando devagarinho pelos zíngaros de pinho e de carvalho adoçou a conversa e comungamos de nós como se festejassemos ou temessemos os deuses antigos e a sua morte ou que a vinda de um deus novo arvorasse de calma a calma da noite.
Como um suspiro ou um afago, a lareira cuspiu o mais das horas um abraço languido e incensado, a resina das àrvores imberbes ferveu sobre as brasas e o sopro morno das chamas, bailando, embalou-nos a todos na calda rememoriação do visto e do vivido, dos que partiram e dos ausentes. E falamos como nas noites antológicas, de Deus e do Diabo, de assombrações e de encarniçamentos, de fulanos que viram passar féretros voando em curvas malfadadas de caminhos do demo, de outros que coleccionam sustos e medos antigos e esqueçemos todos a luz que nos alumia; a janela para o mundo fechou-se hoje a noite inteira e ninguém teve sequer a tentação de ressuscitar o comando da dormência.
O A., por exemplo. O A. é um óbelix, um marinheiro denso sem milhas de mar navegado, um homem imenso, tanto em corpo como em bem-querer. E é ao mesmo tempo uma flor de sal, um passarinho crédulo, um menino pasmo a quem se contam histórias impossiveis como se fossem orações, que é assim que elas são aceites por ele, como um promontório de santidade onde o respeito deve ser manifesto e o receio sincero. O A. tem mil destas histórias de almas penadas e mágoas varridas, de mortos sem descanso eterno. Conta-as junto ao brasume com um trejeito que as tornam deliciosas, apeteciveis como castanhas. Conta-as com um fermento de fantasia que fez desta terceira consoada - mesmo sem a azáfama das filhoses e dos doces, sem a penúria pessoal das prendas a oferecer e a descontar - uma consoada descomprometida, do verdadeiro e velho Natal: o Natal da família.
Sob a mesa o bacalhau acrescentado, uma garrafa de vinho (um palmela creio). No lume, lavrando sem pressa, as curtas labaredas queimam pela última noite o nataleiro, um madeiro de carvalha cerquinha (espécie de carvalho que adoça as folhas com um veludo raro) que arde todas as noites desde a tarde da primeira consoada até aos Reis. O resto do madeiro, no saber dos antigos, é remédio santo no amainar das trovoadas e das tempestades, do frio que aperta e da água que encharca.
O resto da noite é já de anto. Se assim fossem todas as outras, bem que isto de se ser Natal podia acontecer mesmo todos os dias...