domingo, dezembro 26, 2004

A dor mínima portuguesa

1. Sobre o maremoto no Sudeste asiático, ouvi hoje um padre ressuscitar o discurso da majestade divina, da justiça de Deus, da destruição das novas Sodomas e Gomorras da luxúria humana pela água e pelo fogo.
Faltou o padre exclamar com voz tonitruante "arrependei-vos ò pecadores" para que a memória macabra do caldeirão eterno - tão mitigada nos ideários infantis de uma vasta maioria dos portugueses - se recompusesse até ao esplendor de outros tempos. Ainda assim, no fim da celebração não faltava já quem falasse no fim dos tempos, nos sinais dos mundos que se findam.
2. Nas lides jornalisticas são habituais pesos e medidas diferentes para ocorrências semelhantes. Por motivos que não deixam de ser um tanto ou quanto mesquinhos, a morte tal como é concebida pelos meios de comunicação social, está na origem de uma certa sideração do conceito por castas de índole mediática, como se esta tivesse junto de uns e de outros diferente relevância. Assim se explica porque é que a morte de um político ou de um desportista merecem destaque de primeira página e a morte de um operário passa incólumes vezes ignota; ou que a morte de seis pessoas em Bragança num acidente de viação tenha na quadratura sócio-económica dos media uma importância específica maior que a morte de quatro dezenas de individuos num acidente de aviação em África. Nos finais do século XIX, no Bairro Alto dos jornais e das prostitutas, o vulgo entre os companheiros de mester era pesar a vida nestas proporções: a um mendigo morto em Lisboa, equivaliam três mineiros asturianos soterrados ou seis operários da Silésia esmagados ou sessenta agricultores russos que sucumbiram à fome ou cento e vinte pescadores indianos ou então todos aqueles que a onda gigante de Sumatra puxou, na madrugada de Lisboa pelo mar adentro.
3. Sempre que uma ocorrência do género surpreende, a tendência dos media portugueses é a de acrescentar à tragédia o seu pequeno quinhão de portugalidade, a dor mínima dos portugueses. O Primeiro Jornal da SIC teve, por exemplo em directo via telefónica, o testemunho de um certo José Mouzinho, turista português em Phuket e a TSF uma outra portuguesa, emigrada em Macau, que terá "visto tudo" a partir de um barco navegando ao largo.
O pequeno quinhão de portugalidade serve assim, não apenas para delimitar com maior rigor os contornos da ocorrência, mas sobretudo para lhe conferir alguma proximidade, como se o que contasse no meio do caos, da morte e dos destroços, fosse apenas a dor máxima dos portugueses em férias. Tudo o mais nada nos diz. São numeros.
4. Num e noutro caso, seja sob a égide doutrinária da Igreja ou sob a influência temperamental dos media, a dimensão humana da ocorrência é puramente simbólica, de um simbolismo ideossincrático que nos tem sempre a "nós" como máximo denominador. "Nós" somos em alguns casos os pecadores, noutros casos os portugueses e, noutros casos ainda - sempre que se faz a perífrase do terrorismo - a civilização ocidental. A partir de "nós" se concebe também o ideário de uma "Humanidade" que, à luz das cartas e das cartilhas dos direitos humanos e do Homem nos abarca a "nós" e aos outros, asiáticos e africanos e outros que tais, mesmo que por eles não sintamos nem compaixão, nem comiseração, nem nada, apenas a reconfortante sensação de que "eles" (e tudo o que os afecta) vivem longe, demasiado longe.
Nesses termos, tanto o pároco como os meios de comunicação social desempenham, com a maior das eficácias, o papel simbólico a que parecem destinados. Um lembra-nos, com mais conforto que preocupação, que Deus lançou sobre "eles" a sua ira para que "nós" nos possamos emendar e precaver.
Os outros aligeiram a morte à ambigua insignificância dos números e tentam encontrar no travo amargo da tragédia um registo ligeiro de portugalidade para que tanta morte e tão forte devastação possam também ser nossas e significar outra coisa que não seja apenas indiferença silvando em imagens num ecrã vazio.