segunda-feira, dezembro 20, 2004

Fabulário

Esta história que vos conto tem a idade dos séculos. Há muito, muito tempo, nos dias primogénitos em que os saberes estavam inscritos na luz do fim da tarde, corria um velho os caminhos do mundo. Seus, tinha um bordão e a memória de todas as suas horas.
Naqueles dias, imperava na Terra uma tal harmonia que nem nas ondas do mar existia fúria: tudo se desenvolvia na justa medida do equilíbrio, a chuva caia sem prejuízo, a agua corria sem preconceito, suave, quase indelével.
O velho tinha a idade dos embondeiros velhos e das pedras das catedrais. Vagou pelo mundo durante cem anos e conhecia de cor o frio das neves eternas, a textura das areias caldas do deserto, o frenesim dos pântanos. A sua memória era como uma nau de maravilhas que se abria a cada nova aldeia, a cada nova cidade, a cada nova criança na sua estrada.
No dia em que fez cem anos que corria mundo, o velho chegou à aldeia que era sua, de onde havia partido e decidiu abrandar o ritmo, talvez deixar de correr mundo, gastar as horas restantes transmitindo aos seus o que vira e o que vivera nas sete partidas do mundo.
Necessário não é dizer que a aldeia de pastores de onde partira não era a mesma aldeia de lojas, fabricas e automóveis onde chegava agora. O velho não entristeceu, pois é certo e sabido que o mundo e feito de mudança, até os músculos envelhecem e as flores murcham e as pedras se gastam.
Mas as pessoas também mudam. Quando se preparava para contar as crianças o que vira e o que vivera, três palavras saíram-lhe da boca antes da voz começar a enfraquecer, a sumir-se devagarinho, uma nascente que se extingue, uma torneira que se fecha.
Sem voz, os olhos do velho entristeceram, não tanto, ainda assim que se sumisse dele o alento. Ao segundo dia, querendo mostrar aos seus tudo o que vira, colocou às primeiras luzes da alvorada uma tela na praça central da aldeia, muniu-se de aguarelas e pincéis e decidiu pintar aquilo de que mais belo os seus olhos focaram nas suas andanças pelo mundo.
Traçou com um rasgo o contorno curvilíneo de uma aurora boreal, com outro a silhueta titânica das sequóias da Califórnia e quando moveu o braço para desenhar o esboço do que seria um oásis nas margens férteis do Nilo, foi como se sentisse os braços empedrescer, os ossos tornarem-se férreos. Todos os que ali estavam, nas primeiras luzes da manhã, viram o pincel escapar por entre os dedos do velho e cair. Muitos baixaram a cabeça e voltaram costas. Outros riram, troçando da farroupice do velho, comentando que a idade não perdoa, que há muito mais para fazer do que perder tempo com as sandices de um velho.
Triste, o velho subiu as vertentes ácidas das montanhas da sua infância. Tudo naquele tempo era tranquilidade e o vento, não se sabia o que fosse. O velho sentou-se numa pedra e olhou a linha longínqua do horizonte, lembrando-se que fora esse mesmo o único lugar do mundo que não alcançara. Suplantando um horizonte, existe um outro e um outro e um outro.
O velho ainda assim sorriu. Respirou fundo, sempre sorrindo. Naquele momento, uma brisa ligeira levou às arvores e aos pássaros as impressões de tudo aquilo que pelo mundo o velho vira.