quinta-feira, janeiro 13, 2005

Boa Noite, Vitinho...

Olhando bem para trás, bem longe sobre os ombros, que ano fabuloso o de oitenta e sete. Assim visto, aluadamente, até é rídiculo desbravar o alcance de um ano morto e enterrado já lá vão quase vinte anos.
Se bem que recordar não custe, epifanias destas são por completo desnecessárias ; deixam-nos moles e aturdidos com lembranças fuscas, por vezes tão inexoráveis quanto as nuvens que passam e hoje houve festança a manhã inteira, com rapsódias de sinopses vagas a ressoar na lembrança, com a consciência a destilar enredos vividos e a tentar subtrair aos pontinhos da memória um recorte preciso daqueles dias.
Salvaguardado o método dos que todos os dias assentam no caderninho das contas da vida os arabescos quotidianos para rememoriação futura, todos andamos um bocado ao deus dará, vaga para a esquerda, vaga para a direita, sempre que a paisagem dos dias a longo termo convida à reflexão.
Lucidez é coisa que não existe no foro da memória. Se percebesse alguma coisa de estatísticas e de percentagens diria que daquilo que recordo, apenas uma fracção ligeira, aí de uns dez por cento, é verdadeiramente meu, vivido e permeável.
O melhor é começar por um príncipio, ponto assente que o destino é mesmo 1987. Hoje de manhã andei às voltas com uma compilação de charts da década de 80, da última metade irrisória das roupas absurdas e dos cabelos funestos, anos frouxos e agridoces.
O problema é mesmo um irmão que tenho, tão nostálgico que até mete pena; para o rapaz não há mesmo melhores anos que aqueles em que vagabundeou de festa em festa de borbulhinha (borbulhinha uma porra, borbulhona!) no meio da testa, circulando - ventas ao vento - numa XF-17 com um assento dentro do espírito da época (cor-de-laranja), carregada de autocolantes, com tigres saltando sobre fogo e golfinhos nadando sobre fogo e borboletas espadanando sobre fogo.
Não bastasse o kitsch e a ciganice, ao rapaz agradavam (e agradam) como nenhumas aquelas músicas melófonas, de arritmias vibrantes, em que a pandeireta e o reco-reco se juntavam ao sintetizador na ansia da recriação invulgar do som do ovo a frigir sobre a sertã ou da faca a perpassar o gorgumilo do porco.
A uma das hemorragias musicais se deve o presente post. Mais precisa e afincadamente à música "Power of Love", coisa melosa que não vale a unha do dedo grande do pé, mas que se cola ao inconsciente com uma eficácia invulgar; está mais que visto que andei vergonhosamente o resto do dia a trautear a porcaria da música, com ganas de pregar dois sopapos na cachola da senhora cantante.
A senhora cantante - Jennifer Rush - parece que gravou o disco inteiro com alguém a apalpar-lhe o cú; a sua voz é um assíndeto: ora berra a senhora de forma a perigar os cristais, ora murmura bichanices imperceptíveis. O meu irmão gosta, no entanto. Mas a senhora Rush não era a única figura rocambolesca dos oitenta.
Melhor, em oitenta era tudo rocambolesco. Basta que se diga que esta e outras músicas, gravou as o meu irmão, na altura, em meia dúzia de cassetes de fita preta a partir da emissão de uma rádio pirata animada por um senhor vagamente fanhoso que trocava os "emes" pelos "bes" e que falava com voz de gigolo, calma e lestamente: "Esta é a sua Rádio "Bebória", senhor ouvinte.."
Uma dessas cassetes tocou o ano inteiro, tal era a variedade musical que encerrava. Para além da senhora Rush, a cassete resguardava verdadeiras pérolas musicais, das quais recordo esclarecidamente duas: "Voyage, Voyage", dos Desireless, e uma outra, a favor da UNICEF, cujo videoclipe principiava com um helicópetro sacudindo as areias do deserto.
Desta, confesso, eu gostava. Falava de crianças, como eu, só que mais pobres, aflitas, à espera de compaixão.
Ironicamente, falava da sorte que eu tinha, a música. Sorte em ter irmãos com XF-17 prontos a sacudir o asfalto, embebidos em Old Spice, penteados à Ziggy Stardust (ou à Madonna, dependendo dos dias), rebeldes sem propósito nos anos mais marialvas do século.
É verdade, caramba, oitenta e sete! Que ano fabuloso... A meio do Verão, com o sol a pique sobre as casas, o irmão das cassetes meteu-me nas mãos o comando (sem fios) cor inox crom de um ferrari testarossa vermelho e fogoso como tudo, uma das alíneas da posse que inflamam o pecado da lúxuria e exageram vaidades e orgulhos na mesma medida em que semeiam invejas.
Quando se é garoto, ter um ferrari telecomandado - dois palmos de requinte e de bom luxo, mesmo que sejam plásticos e irreais - é como ter uma costela de omnipotência que faz com que se sinta que se é maior e melhor que todas as coisas.
Do Verão de oitenta e sete, lembro-me de pequenas outras coisas vagas, tão melindradas pelo tempo que por vezes resigno-me a pensar que não as vivi, que apenas as imaginei como quis, como um tapete que se tece ou uma trama mental que se enraíza.
Certas são as nuvens cor de flamingo minutos antes do sol se pôr, incendiando as serras e os céus, as mãos e os gestos. Depois, o sol adormecia e as ruas sideravam-se de sombras. Na televisão, a despedida
- Boa noite, Vitinho. Até amanhã...
Não me lembro do peso que tinham as horas naqueles dias, nem que calibre despedaçava o tempo em tardes tão imensas que se podia ouvir mil vezes, na cassete de fita preta de um irmão marialva, a senhora Rush lembrar o quão estranha e poderosa é essa coisa que chamam amor.