terça-feira, janeiro 11, 2005

O cozinheiro ideal

O meu primeiro bolo saiu do forno com cara de meia lua ensombrada e cheiro a sapato queimado. Com nove anos não se pode pedir muito mais e foi às custas desse primeira experiência frente ao forno do fogão que aconteceu (sem que eu soubesse o que a praxe era ou se era politicamente incorrecta ou se um atropelo da dignidade pessoal) a minha primeira praxe.
Aos nove anos não se sabe muito do mundo: na escola dizem-nos que ele é redondo e logo a seguir emendam. Afinal não é redondo, é esférico e achatado nos extremos, a culpa é dos ursos polares, animais balofos e endiabrados que patinham tudo e espezinham quilómetros inteiros, daí o achatamento dos pólos e a pronta fracção dos icebergues.
Aos nove anos, não se sabe nada do mundo. E desconhece-se sobre tudo o que seja o valor do sentimento. Aos nove anos, o meu maior tesouro era uma BMX esmalfina, azul como o céu mais azul das tardes de Junho, a companheira inseparável, a amiga nos tombos e nas desgraças. Aos nove anos, a minha esmalfina era o meu tesouro e o velho receituário da minha avó era a esmalfina da minha tia, eu é que não o sabia.
Aos nove anos, pode-se ser muito egoísta. Na minha esmalfina, só o vento podia tocar. Por ela, batia e berrava e amuava e fugia só para que fosse minha toda a sua possessão. Por se ser muito egoísta aos nove anos, compreende-se também o encanto do egoísmo, o estimar exacerbado ao ciúme e à dor.
Se a minha tia me tivesse dito que o caderno de receitas da minha avó, ruço do tempo e escrito com letrinhas pequeninas e tiradas a compasso, era a sua esmalfina, seja eu cego e cão se lhe tinha tocado: nada há de mais sagrado que a posse exacerbada e o valor sentimental.
Aos nove anos sabe-se muito pouco do mundo e somos macacos uns dos outros: contamos a anedota que nos foi contada, comentamos com parcimónia os mesmos desenhos animados, imitamos aquilo que a televisão nos mostra.
Desconheço já porque motivo - se salivei como o cão de Pavlov ao ver um programa de culinária na televisão ou se foi o diabo que me embalou para tal - peguei ao fim da tarde no caderno de receitas da minha avô para criar a partir do nada o meu primeiro bolo, bolo podre afogado em mel e azeite e erva doce (assim rezavam ao menos as crónicas culinárias do velho caderno amarelo).
Um primeiro bolo é como um primeiro filho. Mesmo com cara de meia lua ensombrada e odor a sapato queimado é a coisa mais perfeita do mundo, uma doce vitória, um feito, um marco, ainda que para lá chegar se tenha trapaceado um pouco no açúcar, se tenha enovelado um pouco o fermento e a farinha, encorpado demais as muralhas castelares das gemas, cultivado a frágil planície do caderno da falecida com máculas de bolo cru espessas como moedas ou pinceladas douradas de Pollock, tão ouradas que o fino e arcaico azul da esferográfica se diluiu para nunca mais, recortado por ilhas de gordura num mar finito de palavras brandas e outras coisas doces.
O pior foram as três e meia da tarde, hora aziaga da morte de Cristo e por muito pouco, hora da minha própria paixão forçada, de açoites e chicotadas, de orelhas perseguidas e encalacradas, da colher de pau rasando as unhas e os nós dos dedos, a hora funesta em que o achamento da relíquia, esplanada sobre o tampo do balcão envolta por grumos e salpicos de massa cor de caramelo, se fez pelos olhos ferventes – indignação e mágoa batidas num castelo denso – da tia cozinheira, predadora de todas as delícias dos musseques do litoral e dos tesouros ultramontanos guardados por séculos de servidão monacal.
No bolo, acometendo maior praxis à tragédia, nem uns gatos vadios e esgalgados (que de quando em quando mendigavam fora de portas a supérflua caridade dos restos) lhe pegaram.
Serviu o culinário drama para cimentar um estranho afecto pela imaculada integridade de tudo o que sejam pantagruéis e revistas de doçaria, tudo o que sejam destacáveis de recortar onde uma musse faça os sentidos requebrar. Receitas de ontem ou de hoje, o que importa menos é que encarnem a perfeição; está é a manta pintada se alguma gota de molho decide marinar no meio das letras de um companheiro das cozinheiras ou se um nadinha de merengue se aninha no vão da contracapa dos segredos da cozinha …
Por essas e por outras, por um primeiro bolo que quase me rendeu uma crucificação efémera, é que me considero hoje o cozinheiro ideal. Bom garfo e orgulhoso, pela rede deambulo demandando novas e velhas rotas para saberes e sabores de sempre. Enquanto a impressora cospe um a um os ingredientes, há um entusiasmo em ponto de rebuçado que aquece, aquece e liquidifica.
Nas entradas dolomíticas da imaginação, à agilidade das iguarias, acresce um prazer sórdido e pecaminoso. Os ovos rebolam com o açúcar, a canela afoga a brandura num trago pequenino de cointreau, a batedeira derrapa contra o fundo do recipiente e propulsiona uma chuva de salpicaduras que se espalham pela mesa, pela receita impressa num times new roman carregado, pelo chão, pela alma.
E é um bocado como se crescesse ali uma arte efémera e sucedânea, a folha carregada de pepitas imberbes, o forno espalhando pela casa o aroma paliativo da doçura, dando as últimas pinceladas num Picasso original, no mais versátil dos Van Goghs.
Sem ressentimentos – descartável que é o receituário – o cozinheiro ideal cria para o estômago a mais melíflua arte. Eis a doce moralidade da tarde em que um bolo degenerado, que não tendo sido comido, quase matava de raiva e congestão uma tia cozinheira e três gatos malhados.