domingo, janeiro 16, 2005

Martunis, o patriota

Mesmo no rescaldo das mais negras tragédias, horas há que são felizes. Para o miúdo Martunis, a felicidade chegou em dose dupla: porque foi reencontrado para a vida quando a família que lhe resta o julgava morto e porque o Campeonato da Europa de Futebol é já uma coisa pretérita.
Se em vez de um Euro 2004, tivesse abraçado o projecto de um Euro 2005, o pobre do Martunis, para além de ter que suportar para o resto da vida a recordação daquela fatídica manhã pos-natalícia de domingo, tinha que aguentar a idiotice e o orgulho abjecto de uma naçãozita do outro lado do mundo, emproada na túrria convicção de que há uma mística e uma certa majestosidade na camisola que o menino sobrevivente usava, portuguesa concerteza, com a graça da virgem maria...
Se o Euro se realizasse em Junho próximo ou se por qualquer eventualidade a tragédia tivesse precedido o torneio, o pequeno indonésio arriscava-se a substituir o boneco Kinas como mascote do Europeu, tamanha é a estranha apologia que se faz da sua sobrevivência nos meios de comunicação social, tão generosa é a compaixão e a gratidão dos portugueses para com o pequeno Martunis por ele se ter lembrado de sobreviver com uma camisola nao oficial da Selecção Portuguesa de Futebol, as oito letras bem evidentes - PORTUGAL- no peito franzino do miúdo, como se de um outdoor se tratasse.
Porque é disso que se trata, não é? Não é a sobrevivência de Martunis que excede a factualidade da notícia, mas sim a existência de uma camisola da Selecção (ou dela representativa), envergada por um menino que deambulou durante semanas por entre a desordem que a onda siderou.
Convenha-se mesmo que à sobrevivência de Martunis falta em rigor e densidade uma carga dramática fundamental para que a "palavra" sobrevivência possa ser plenipotencialmente entendida (e como tal, tão plenipotencialmente legendária como os meios de comunicação social a conceberam).
Martunis é um sobrevivente. Alguém que escapa a um flagelo que deixa para trás tantas vítimas quanto as estrelas do céu, não pode ser outra coisa senão um sobrevivente.
Mas há na sobrevivência de Martunis o traço de uma anânke apesar de tudo feliz; apesar de tudo, Martunis é um sobrevivente não condicional, sem um lugar para o pathós definido. A criança sobreviveu, pois então, mas não sobreviveu no lugar comum dos sobreviventes mediáticos, dias a fio debaixo de destroços, soterrados por toneladas de detritos.
A ilação adiantada - a da sobrevivência feliz - não rouba o mérito jubilante e a felicidade circunstancial a uma ocorrência que não deixa de ser, no umbigo de tanta destruição, uma ocorrência admirável. Mas também não faz da história de Martunis uma história tão extraordinária como os jornalistas portugueses fazem supor que ela seja. O Portugal Diário, por exemplo, narra a história como se ela fosse uma epopeia, tanto o destaque recai sobre Martunis quanto sobre o farrapo que veste.
Para o pequeno indonésio, a julgar pelas promessas da FPF, o ter vestido em 26 de Dezembro a camisola foi, no meio da sindicância atroz do destino, um golpe de sorte. Pena é que a lusitana compaixão não seja nem genuína, nem desinteressada e que surja como o prolongamento de um estimulo de índole pavloviana, suportado por um nacionalismo patusco e completamente inútil. Pena que tenha sido necessária uma camisola para que os portugueses percebessem que para miudos como Martunis, o refluxo da onda que varreu o Sudeste Asiático, sem futebol que lhe valha, durará uma vida inteira.

1 Comments:

At 9:34 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Comentando a entrevista de ontem na SIC, Maria João Ruela pergunta "E perguntaram ao Martunis porque é que usava a camisola da nossa selecção?"... Lógico que a resposta foi "Não, haviam coisas mais urgentes a tratar, como por exemplo, a desidratação!"...
E ainda nos prestamos a este tipo de situações, deviamos ter vergonha!

 

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