terça-feira, fevereiro 08, 2005

Sonho de uma tarde de Verão

Hosted by Photobucket.com

Por uma prega escorreita dos estores, um nada mais que a espessura de uma moeda opulenta, entrou de uma golfada, com precisão e fúria absolutas, uma vassourada de sol, uma réstia de luz limpa e poderosa, tão poderosa de resto que encheu de poças de luz a morna obscuridade do quarto.
Não fosse o Verão adiantado em seu caminho e o homem julgaria que um pedaço de sol (uma partícula ínfima, residual na carga atómica dos despojos solares) for endereçada com precisão maquinal àquela fresta mínima de uma persiana escangalhada pelo vento e pelas peripécias inenarráveis do trânsito dos dias.

A claridade, nos dias vastos da estação, tomava para si a amplitude plenária dos espaços, invadindo mesmo os mais improváveis, lugares impossíveis onde a luz não é tanto o furão que se infiltra quanto a própria subversão da natureza dos sítios e das palavras pelas quais os homens os tinham. Não eram só as paredes do quarto ensombrecidas a escorrer fragmentos de luz. Por todo o lado, onde a claridade crua se enraizava, um sudário branco vagamente translúcido matizava os escassos redutos de sombra que persistiam e tomavam de assalto a frágil sensibilidade das vistas.

A luz, cruel e plenipotente, devastava as horas iniciais e entrava pela noite fora, já o sol se sumira para além do reduto do horizonte. Invadia as grutas e as caves e ocupava as madrugadas eternas das plataformas mineiras, estava no reverso das pedras e no fundo dos poços - transformando o âmago dos silos e das sombras numa radiância líquida, farta, torrencial, tão omnipresente quanto a própria essência da estação, calda e imensa.
Não fosse a luminosidade ofuscar em permanência e o homem teria desejado que esses dias se transformassem numa manhã infinita, limpa e soberana. Apraziam-lhe as jornadas grandes em que os gestos e as acções se multiplicavam, em que mil vidas pareciam ganhar consistência, consignando agilidade às horas, desmembrando os segundos em compassos modorrentos e bruscamente duráveis, duráveis, como se o tempo se flexibilizasse e os dias, alcançando a magna amplitude do dizer popular, de tão vastos parecessem encerrar em si cem anos, larguíssimos em memórias.

Ergue-se. Num gesto timorato puxa a correia cinzenta dos estores. Um bruááá monocórdico e fugaz antecipou por momentos curtíssimos a lâmbara torrencial de luminosidade que em menos de nada dissolve os derradeiros despojos da noite. Sob as casas, desapareciam do azul concreto do céu as últimas aparas do rosa pueril que coroa nesses dias a alvorada; o ar, ao escorregar pela traqueia, tinha a estranha consistência da água morna, um esgadanhar grosso e licoroso deixava adivinhar uma tarde de humores pesados, de calor de inferno ou de siderurgia.

Embalado pelo fresco da madrugada, o homem concedera às últimas horas de sono o beneplácito do sonho de uma tarde de Verão, total e limpa, a luz tão líquida quanto a água, correndo e corregando entre as fragas, em carreiros de espuma e musgo, a luz reverberando os segredos do fundo do rio, reflectida em pequenos cristais de tamanho mínimo e nas escamas dos peixes e nas medalhas dos pescadores naufragados nos ramos dos amieiros.

Sonho de uma tarde de Verão, luminoso e líquido. O plo'chh do anzol no confronto inicial com a linha ténue da superfície, a isca - um gafanhoto jovem, rosado e imprestavelmente atlético - que se debate contra a providência, um bordalo que sucumbe à gula e o pescador, que vê tudo no plasma do rio, como se pertencesse a uma instância superior de clarividência ou olhasse para uma pintura da sua margem.
A mulher, que apenas em sonhos o acompanhava, criou para aquele momento (o momento evidente em que se percebe que não há saída legítima para a vida, o segundo fraccional em que o peixe engole o gafanhoto e o anzol dissimulado) uma intermitência. Passara o sonho todo a tricotar, ponto por ponto, sentada numa cadeira, imune, ao que parece, ao bulício da água e ao bailado das sombras sobre o curso do rio e aquele fora o único momento em que os braços fizeram amainar os gestos mecânicos de linha vai, linha vem, agulha vai, agulha bem. Lançou os olhos à água e como se visse a cena nos mais densos documentários da tv viu o bordalo abocanhar o insecto, o bordalo contorcido contra paredes invisiveis, esbarrando com massas de água cortante. Nesse momento, o momento evidente em que se percebe que não há saída legítima para a vida, a meada de lã cor de flamingo escorregou-lhe do colo. Circuito fechado, a vida.
A nesga de luz acordou o homem no segundo certo em que fazia rolar o carreto com o polegar e a sediela se eriçava sobre a vítrea superfície do rio, de modo que não soube nunca quem venceu, se ele ou se o peixe. Acordara levemente excitado, com vontade de possuir todas as coisas.
Desde que começara a ter dores a sério, lances de adaga desde as pernas até aos ombros, aconteciam-lhe estas coisas curiosas, de serem outras as idades e os desejos que tomavam conta das suas expectativas, como se fossem viáveis ou possíveis.
Apesar das dores, algo novo o inquietava: os sonhos semeavam-no de esperança e ter esperança é quase tão difícil como o resto, já que o hábito fazia da esperança mais forte do que aquilo que poderia esperar e temer numa cama de hospital, numa janela aberta sobre a cidade.
Não há nenhuma saída verdadeira para a vida. Quando o futuro se escreve com os cuidados paliativos dispensados ao sacudir e ao afugentar dos males cancerígenos, sabe o homem que não há saída verdadeira para a vida. Pode quando muito adiar a decisão ou adocicar o percurso com habilidade e astúcia, mas não há saída. É um sistema fechado e no fim existe a morte. Ponto final. E a morte, claro, não é uma solução. Nem o é o sonho, por fecundo que seja, de uma tarde de Verão.