Sonho de uma tarde de Verão
Por uma prega escorreita dos estores, um nada mais que a espessura de uma moeda opulenta, entrou de uma golfada, com precisão e fúria absolutas, uma vassourada de sol, uma réstia de luz limpa e poderosa, tão poderosa de resto que encheu de poças de luz a morna obscuridade do quarto.
Não fosse o Verão adiantado em seu caminho e o homem julgaria que um pedaço de sol (uma partícula ínfima, residual na carga atómica dos despojos solares) for endereçada com precisão maquinal àquela fresta mínima de uma persiana escangalhada pelo vento e pelas peripécias inenarráveis do trânsito dos dias.
A claridade, nos dias vastos da estação, tomava para si a amplitude plenária dos espaços, invadindo mesmo os mais improváveis, lugares impossíveis onde a luz não é tanto o furão que se infiltra quanto a própria subversão da natureza dos sítios e das palavras pelas quais os homens os tinham. Não eram só as paredes do quarto ensombrecidas a escorrer fragmentos de luz. Por todo o lado, onde a claridade crua se enraizava, um sudário branco vagamente translúcido matizava os escassos redutos de sombra que persistiam e tomavam de assalto a frágil sensibilidade das vistas.
A luz, cruel e plenipotente, devastava as horas iniciais e entrava pela noite fora, já o sol se sumira para além do reduto do horizonte. Invadia as grutas e as caves e ocupava as madrugadas eternas das plataformas mineiras, estava no reverso das pedras e no fundo dos poços - transformando o âmago dos silos e das sombras numa radiância líquida, farta, torrencial, tão omnipresente quanto a própria essência da estação, calda e imensa.
Não fosse a luminosidade ofuscar em permanência e o homem teria desejado que esses dias se transformassem numa manhã infinita, limpa e soberana. Apraziam-lhe as jornadas grandes em que os gestos e as acções se multiplicavam, em que mil vidas pareciam ganhar consistência, consignando agilidade às horas, desmembrando os segundos em compassos modorrentos e bruscamente duráveis, duráveis, como se o tempo se flexibilizasse e os dias, alcançando a magna amplitude do dizer popular, de tão vastos parecessem encerrar em si cem anos, larguíssimos em memórias.
Ergue-se. Num gesto timorato puxa a correia cinzenta dos estores. Um bruááá monocórdico e fugaz antecipou por momentos curtíssimos a lâmbara torrencial de luminosidade que em menos de nada dissolve os derradeiros despojos da noite. Sob as casas, desapareciam do azul concreto do céu as últimas aparas do rosa pueril que coroa nesses dias a alvorada; o ar, ao escorregar pela traqueia, tinha a estranha consistência da água morna, um esgadanhar grosso e licoroso deixava adivinhar uma tarde de humores pesados, de calor de inferno ou de siderurgia.
Embalado pelo fresco da madrugada, o homem concedera às últimas horas de sono o beneplácito do sonho de uma tarde de Verão, total e limpa, a luz tão líquida quanto a água, correndo e corregando entre as fragas, em carreiros de espuma e musgo, a luz reverberando os segredos do fundo do rio, reflectida em pequenos cristais de tamanho mínimo e nas escamas dos peixes e nas medalhas dos pescadores naufragados nos ramos dos amieiros.
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