segunda-feira, agosto 08, 2005

Jornalistas (1)

Sobre fogos florestais há muito quem fale nestes dias: os ministros, os patrões, os bombeiros, quem fica sem tudo, quem não perde nada mas aproveita para aparecer na televisão. Falam os presidentes de Câmara e os responsaveis municipais pela protecção Civil, os populares e as imagens de Inferno que entram pelos televisores adentro.
Falam os jornalistas deslocados no terreno e dizem, em chavões que se repetem (porque não há mesmo muito que se possa dizer), que as chamas avançam em não sei quantas frentes não controladas, que destruiram uma ou outra casa no entretanto, que há falta de meios e de bombeiros, que o fumo é espesso, o ar irrespirável.
Falam os outros jornalistas, os que nunca sairam das suas altas torres de Lisboa e se indignam porque a jornada faz amanhecer a capital encoberta por um novelo de fumo grosso, que esconde as colinas e o casario e isso por si só é para eles uma tragédia.
De certa forma lembram Nero vendo Roma a arder a seus pés, sendo que a nuance é preciosa: Lisboa não arde. Amanhece envolta num lençol de fumo, mas não há em lado algum uma lambara, um braseiro que se expande.
E os jornalistas de Lisboa, ciclópicos, com um olho só para os fumos da capital, julgam possuir, nos seus gabinetes, o direito à indignação, o direito a escrever sobre o pinhal queimado e as serras denegridas e o pânico das populações.
Para muitos o problema é, pura e simplesmente, a repetiçao dos mesmos erros. Para alguns dos cronistas de gabinete e de microsoft word, só os cegos caem duas vezes no mesmo buraco. Manuel Carvalho, sub-director do "Público", assina numa das edições destes últimos dias do diário um artigo de opinião sobre o que já ardeu, o que falta arder e as razões porque arde Portugal sempre que o calor aperta um bocadinho mais.
A pensar como Carvalho pensa, se o país arde como tem ardido é porque por essas serras adiante as coisas são uma selva, os matos não são limpos, as encostas abundam de tojos e silvas . Para quem lê o artigo, sentado numa esplanada lisboeta, remenesce um certa sensação de isenção. Como se fosse líquido que a ênfase no tratamento destas coisas deve ser posta não no combate, mas sobretudo na prevenção, Manuel Carvalho parece fazer a apologia de que a culpa do braseiro em que se tornou o país é, antes de mais, de quem tem um pedaço de montado para limpar e não o faz.
A opinião de Manuel Carvalho, ainda que respeitável, é a opinião do jornalista urbano, moderno e autista, do jornalista que se encontra na encruzilhada entre o titulo do artigo e o aparelho do partido.
Só de um lugar da indole, de uma encruzilhada, se percebe a forçada inocência do argumento do cronista. Ou o sr. Carvalho acredita piamente na boa vontade dos homens (o que não é coisa de pessoa crescida) ou então (o que é pior) já leva tantos anos de actividade jornalística que já sabe o credo do crente e do pregador, o floreado das elites e o infrutifero paleio dos políticos.
A ênfase na prevenção é eficaz em questão como a SIDA, uma qualquer doença em que a vacina possa valer de algo. Os incendios não são nem doenças, nem desígnios das divindades. Não são sequer permeios inveitáveis como um tufão, um terramoto ou uma chuva diluviana despegada do céu.
Se existem, existem a maior parte deles porque interessam a alguém. E não há prevenção que possa valer contra a malícia dos homens. Não há mata, por muito limpa que se apresente, que não sucumba a um fósforo que se acende por mão sombria, que se não faça cinza perante a pressão de quem não tem escrúpulos.
O trabalho do jornalista, mesmo do jornalista urbano e acomodado, seria, antes de mais, o de desconfiar da sucessão causal das coisas: de duvidar da naturalidade de tantos e tantos fogos, de questionar a probabilidade de uma e de outra ocorrência. E em última instância questionar. Perguntar, a si mesmo e aos outros, porque razões não existe em Portugal um serviço nacional preparado para responder a este tipo de imponderáveis? Perguntar porque razão concessiona o governo o combate aéreo aos incendios a empresas privadas? Perguntar porque é que há dinheiro para comprar submarinos e construir estádios e não há para comprar uma mão cheia de Canadair's? Porque é que não se cumpre a lei que inviabiliza a construção de imóveis ou infraestruturas em terreno ardido durante uma década? Porque é que não se investigam todas aquelas histórias sórdidas que se ouvem contar sobre fogos que despontam depois da passagem de aeronaves ou de jipes ou de outras tantas coisas?
Perguntas a mais?