segunda-feira, maio 29, 2006


A Linha do Coração. Dois aspectos agradam no legado que Portugal espalhou pelo mundo, no rescaldo de sagas, de erros e de diásporas. Uma é a tranquila reverência da língua, ora travestida com a doçura dos trópicos, ora macerada nas águas frias do Atlântico, bela e caprichosa em palavras plenas de cor e de extensão, em sindicâncias musicais. Morango, sinfonia, argila, tulipa, alecrim, açúcar, açúcena: tudo palavras de que gosto, tudo ritmos que cultivo.
O outro aspecto em que a inventividade portuguesa soube navegar com algum génio foi na questão da urbanidade e na redenção de novos burgos.
As cidades que comportam uma herança portuguesa regem-se todas por uma linha emocional que condensa a identidade da cidade e dos que nela vivem ou viveram, como se a presença de quantos por ali passaram inculcasse no etéreo uma presença ad aeternum; que recebe com confortoe reverência os que chegam, que bombeia vida e irradia bulício para o que sobra da urbe.
Gosto das cidades com coração. Do rossio central, da praça ou do terreiro abrasados pelo sol do meio-dia, de desfilar ao início da noite por entre candeeiros sempre acesos, de sentir o torpor imaginário do coração que bate nos passos dos que transitam, nos estores que se abrem e fecham quando o vento rasga a monotonia, da água impossivel que floreia nos chafarizes e nas fontes.
Lisboa tem, sob o olhar do Carmo decadente e de um Chiado pobremente magnânime, o coração atracado a meio termo entre o Rossio, o Terreiro do Paço, a Rua Augusta e a Praça da Figueira: a vida em curso, o drama em charme, a mágoa em flor.
Em Macau os passos multiplicam-se no Largo do Senado, tornam-se as paredes amadas e a familiaridade confortável, quase cosmopolita, mais forte, mais densa. O sentido de presença e de pertença possível. O resto da cidade existe, como uma árvore de concretizações , de veias de betão que se expandem a partir da linha curta e vã que une o Largo do Senado e as ruínas de São Paulo. Como se fora esta afinal, a linha do coração.