sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Centro


Eu sou Xiao Lin, o que vê passar as nuvens e o que remói o silêncio. Por mim fluem as noites, os dias, as gentes; tantas que não me importo já em ler-lhes o rosto, como não leio as horas aos dias e a solidão às noites.
Eu sou Xiao Lin, o espectro. Vejo a cidade descarnada e à cidade nua, enfeito. Como se eu todo fora desdém. De negritude as torres que se erguem, eléctricas e mortas.
De humanidade as pedras brancas e negras: basalto, calcário, calcário, basalto, o xadrez da praça e eu na órbita dos que passam.
São tantos, não lhes leio os rostos e eles não me perscrutam também, queixam-se apenas do cheiro mau que me sobe do corpo.
Aos poucos, por vingança, fiz do olfacto um baú de tesouros. O café, mil ondas hertzianas de paladar arábico, colombiano, uma geografia inteira de sabor, guarda o odor que mais me agrada. Sobe do coração dos copos verdes, uma emanação de aroma e vapor e vida.
Sou Xiao Lian e devia gostar mais do cheiro cru do chá pu-er. Por casa, tenho a terceira coluna além das mesas da cafetaria. Daqui avisto a praça em toda a sua amplitude: a misericórdia, o campanário dos correios, os enfeites luminosos do porco dourado, o frontão do senado, o mar de gente.
Nas costas, claríssima como a gema de um ovo, a fachada amarelo gualto da igreja. Nunca lá entrei e há muito que não visito um templo; talvez me não deixassem entrar por causa do mau cheiro que sobe do meu corpo. Peço todos os dias, aos deuses da igreja, amarelo-ovo, aos vermelho brasa dos templos e a todos os outros que seja um bom dia, que não chova, que não queiram arredar-me da terceira coluna, que deixem uma nesga de praça livre para que eu possa ver passar os autocarros e que por este caminho, com a intenção nas ruínas, desfilem mais dessas mulheres que levam consigo a primavera, tão frescas que me parecem embebidas em permanência em água de goivos. Peço que a luz tombe tranquila e que a noite caía serena para que não seja minha a ambição de voltar a contar as horas. Eu sou Xiao Lin, o último a ver passar as nuvens.

2 Comments:

At 1:54 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Mas que bem... É bom ver que ainda não perdeste o toque meu amigo.

Um abraço, R.

 
At 6:50 da manhã, Anonymous Anónimo said...

faz lembrar um homem que anda por aqui, pelo centro, dia apos dia. todos os dias...
deve ser o mesmo...

escreves bem!
um lado que nao conhecia ;))

um beijo***

 

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