terça-feira, novembro 22, 2005

Nostalgia nr. 2 - Hamburgo


Se é que alguma vez o fomos, necessários ao mundo, um ápice basta para que saibamos que o mundo não se compadece com necessidades, que somos o que somos mas necessários, não, nunca, não o podemos ser se a nossa existência quase nidifica na circunstancialidade, somos menos o fraccionar do pensamento que o estertor da carne e do estertor da carne nascemos e, cuidamos, para que a nossa única glória não seja a mais palpável das misérias, que somos úteis ao mundo e que podemos, pelos nossos gestos e vontades ser-lhe a ele necessários se nem é o seu girar mais rotineiro por nos carregar consigo, nem o tempo mais relapso por o povoarmos e, como tal, cuido que a necessidade que o mundo tem de nós, carne que somos cinza amanhã, se dissipa na epifania do costume, ao mundo fazemos peso e sombra e estorvo, nem sequer enfeitamos, sorte de que as flores podem armar vanglória pois têm ainda, mais que não seja, como que uma presença estética anterior ao próprio arranjo do vocábulo na página 173 do Dicionário Houaiss, versão revista e corrigida, lugar único onde não têm mais poder que “guerra” ou “doença” ou “desastre” ou “morte” no crónico e quotidiano enfeitar da marcha do mundo, pois nem flores nem alegria, nas folhas de um dicionário, rimam com coisa alguma, existem apenas para ser marcas de existência num “metamundo” diminuto perante a existência em bruto desse outro mundo palpável ao qual me custa a acreditar que fossemos necessários, ainda que a cinza dos vivos de ontem se amassasse com o sangue dos vivos de hoje para que existíssemos, não digo carnalmente, que o mundo vagão de carga e transporte também tem tara limite, mas apenas mera consciência, como que uma memória límpida e tão translúcida que possam ser revistos por palavras de dicionário e agonias de coração os séculos dos séculos e os minutos perdidos de todos os dias e compreendidos os gestos e recordadas as mágoas e os momentos e o que mais seja que o mundo, por não ter memória outra que não seja a da luz e a dos livros, parasitou e carcomeu e digeriu sem que a constância irrepreensível do paladar restasse como incómodo ou indicio ou culpa, mas o mundo é assim mesmo e assim mesmo é o Homem, um peca por não ter memória nenhuma, o outro peca por a ter egoísta e curta de mais, memórias só as minhas, Obrigado, e isso de memória do mundo o que é? o que pode ser que seja, se o mundo é um mono apático e patético, uma criança trissomática que nem de si tem consciência? falassem estes que tenho aos pés e que a terra provavelmente deglutiu e dir-vos-iam que este cemitério de Ohlsdorf que é um mundo dentro do mundo, ou a memória de um mundo emprenhando outro, quem passa distraidamente nem a reverência mínima do susto desenvolve, afinal debaixo de tanto larício, de tanto abeto, de tanta tília, de tanto verde e tanta pétala o que existem são mortos, Senhora! não rosas, mortos e húmus e vida de novo, mas só à superfície, como se a morte se encontrasse musculada à espreita debaixo de uma derme de verdura, tanta, que se torna agradável a ideia de se morrer por ali, de se divagar por entre os nomes como agora divagam vós, leitores prováveis, entre estas palavras, Friedrich Lehman, geb 12-02-1922 ges 07-07-1944, à direita os Murnau, nome de realizador e portanto de enciclopédia, mas estes humilíssimos e não só anónimos porque esta pedra existe, é concreta e nela os nomes August e Heinrich, pai e filho, ali afloram sem paladar, apenas palavras insossas, pudéssemos saber algo mais, que pai e filho correram juntos pelas margens do Elba, atiraram a sediela aos peixes e calhaus às aves e a pedra deixaria de o ser, para ser como que o crânio branco que aflora de uma tragédia e que Hamlet tem suspenso na palma da mão, Terás sido ou não? eis a mais falaciosa das questões, porque ser ou todos somos ou não somos, termos sido depende da elasticidade do tempo para apagar tudo menos o nome que temos para o mundo sem que o mundo dele tenha a mais pequena das necessidades, sendo verdade que em tempo algum temos verdadeira noção do nome que temos e depois da morte que falta nos faz o nome, nenhuma, que o digam August e Heinrich Murnau, dois nomes numa pedra, lidos ao vento da indiferença por quem divaga pelas ruas do campo santo, como foram já lidos também os nomes dos valentes soldados da 1ª Guerra, sucumbir que sucumbiram em nome da importância do nome do Kaiser Guilherme, os nomes dos mortos das cheias de 1962, da embrulhada spartakista, dos mortos anónimos e dos mortos antónios, dos mortos de fardelagem e dos mortos que se finaram de morte circunstancial, morte morrida e não matada que, esses, ocupam quarteirões, há os dos escombros de Barmbek e de Altona, há os das ruínas de Altstadt e os de St. Pauli, os de Haarburg e os de todo o lado, cinquenta e cinco mil rostos que foram sonhos e carícias e carne em trânsito e carne em vida e são agora como que linhas graníticas onde Deus escreveu e prescreveu e, no julgar dos vivos, escreveu e prescreveu bem, ele que escreve direito em linhas tortas e os tem, ao firmamento de mortos de Ohlsdorf e à memória do pulsar do mundo que os nomes e os números dissimulam, resgatados da consciência que devia de ser da Humanidade, como se o mundo nunca tenha sido mais que a sombra que se estende, tranquila, ao longo de uma alameda de faias e de larícios.
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(Texto escrito em 4 de Junho de 2004, à sombra das árvores nas margens do Alster e publicado uma primeira vez no defunto blog www.papaia-express.blogspot.com)