quinta-feira, março 22, 2007

Português, para que te quero ...


1. Concebo a cultura como um elemento estruturante. Tão mínimo e tão máximo que pouca coisa dele se abstem e a ele escapa. É a cultura que nos unifica, mas é ela também que nos tergiversa. E é por isso que concebo a cultura, em latu sensu, como o campo mais fértil para a sustentação de laços de tolerância.
A cultura, na mais púdica ou na mais refinada das suas manifestações, é sempre um acto de conhecimento e de compreensão: do eu, do outro, do espaço e do tempo, do presente e do passado. É também a plataforma onde fermentam e se conjugam as correntes do pensamento.
A presença portuguesa em Macau não é, ao contrário do que se sói pensar desde que esta frondosa RAEM foi instituida, uma mera contingência histórica. A identidade de Macau mergulha nela a sua originalidade ontológica e apenas por ela se concebem os pressupostos que diferenciam Macau do que resta da China.


2. A história, já se sabe, quem a escreve são os vencedores. Um estudo por estes dias divulgado por parte de um investigador australiano concebe como real a possibilidade de terem sido navegadores portugueses (e não uma armada inglesa capitaneada por James Cook) a operar a descoberta da Costa Leste da Austrália.
A teoria tem por base uma fracção de um portulano guardado numa biblioteca californiana que, alegadamente, dá a conhecer - duzentos anos antes de Cook ter aportado no país dos cangurus - com grande precisão a costa oriental australiana, precisamente a partir de Botany Bay, o local onde a frota do almirante Cook terá pela primeira vez lançado amarras.
No cerne da argumentação radica a teoria de que terá sido uma expedição de quatro embarcações portuguesas, comandada por Cristovão de Mendonça, a primeira a colocar, em 1522, ocidentais em território australiano.
São várias as razões que concorrem a favor da credibilidade da hipótese agora avançada. Desde artefactos de cariz alienígena que remontam a períodos anteriores à descoberta de Cook, até à evidência de que os portugueses conheciam bem a quase total imensidão do Pacífico sudoeste (conhecimento comprovado pela presença portuguesa em Timor, em Solor e nas Flores), em muito a teoria de que terá sido Cristovão de Mendonça o responsável pelo achamento da grande ilha australiana faz lembrar a epopeia americana dos irmãos Corte-Real e a sempre arvorada ( e nunca aceite) hipótese de que os portugueses terão colocado pé na América bastante antes dos tripulantes da Pinta, da Niña e da Santa Maria o terem feito.
Num e noutro caso, um outro factor de similariedade se acrescenta. Ambos arvoram uma hipótese que colide com alguns dos fundamentos na origem da hegemonia e do ascendente que a cultura anglófona contemporaneamente manifesta.
É costume dizer-se que águas passadas não movem moínhos. Tanto a Austrália, quanto a América repudiam ser qualquer outra coisa que aquilo que sempre foram habituadas a pensar que são.
E é por isso que esta ou qualquer outra variação da "verdade histórica" tal como ela é concebida pela fermentação dos séculos, não terá (ainda que apresente mundos e fundos, documentos e brazões) outro destino que a oblivição. A história: o relato das misérias de todos, das fraquezas dos outros e da glória dos vencedores.


3. A julgar pela "filhadaputice" que o Instituto Cultural anunciou esta semana, há muito boa gente em Macau a quem aprazia ter tido outro povo que não o português no devir histórico de entidade administradora/colonizadora. Uma tal contingência - no caso de ter sido o cosmopolitismo britânico o responsável por uma presença multisecular continuada - teria inviabilizado os gastos avultados hoje tidos com a manutenção de uma língua difícil e estranha, que apenas meia dúzia de fidalgos mais iluminados consegue falar e compreender.
Dá a entender, o Instituto Cultural, que se a história permitisse divórcios, Macau há muito se teria amancebado e abandonado quer o chinês, quer o português em detrimento dessa outra língua leviana, o inglês, em que todos parecem falar e em que ninguém comunica.
A razão pela qual tal acontece radica no facto de Portugal ser cada vez mais um país mínimo, sem qualquer outra localização plausível que não na memória histórica com que se apresenta ao mundo e, como tal, na memória que o mundo ainda dele vai tendo.
Os cépticos pós-1999 há muito que adivinhavam e apregoavam o dia em que à língua caberia a primeira bofetada. Duro foi que ela tenha sido agraciada pelo Instituto Cultural, uma instituição com o dever de professar a tolerância, o respeito e a construção continuada dos mecanismos de simbiose que sempre fizeram de Macau um mundo aparte no coração da Ásia.
Durante o Festival de Artes do território, que decorre entre cinco de Maio e 2 de Junho próximos, são vários os espectáculos que, no entender dos responsáveis pelo Instituto Cultural, não merecem legendagem simultânea em português.
Sem querer traçar paralelismos inóquos, numa cidade faminta de manifestações culturais como é Macau, a opção pela qual enveredou o Instituto Cultural é um tanto ou quanto suícida. Os raros espectáculos de qualidade que desembarcam em Macau estão para a comunidade portuguesa como os saraus e as tertúlias estavam para o Portugal oitocentista tão bem descrito nos romances queirozianos: são um espaço de encontro, um espaço de convívio, um espaço mesmo de demarcação social.
O Instituto Cultural decidiu colocar a língua portuguesa na borda do prato. E que tal se os portugueses se colocassem à margem do Festival de Artes? Gostava, Miss Ho?


4. Francisco Manuel de Melo, o profíquo escritor seiscentista que escrevia com igual facilidade em português e em castelhano, descreveu (não sem maledicência) na sua Carta de Guia de Casados as qualidades de que uma boa esposa deveria saber gozar na presença de seu marido. Entre elas postulava a questão do comedimento na fala e no riso, nos assuntos dos homens e nos assuntos de Deus, que não deveria sequer procurar compreender.
Dizia ainda que na boca de uma mulher a mentira era pássaro que nunca deveria pousar, uma vez que se em qualquer circunstância a mentira era já um objecto ruim, na boca de uma mulher mais vil se tornava ainda.
Vil ou não, a verdade é que a mentira veste muito mal alguma gente. Heidi Ho, presidente do Instituto Cultural, por exemplo. Tropeçou em desculpas esfarrapadas, engasgou-se com improbabilidades e jogou o nome na lama a propósito de uma decisão que nunca poderia explicar em bons termos a ninguém de seu perfeito juízo.
Porque armas e bagagens decidiu, já agora, o Instituto Cultural, atropelar o estatuto de língua oficial de que goza o português e remeter o idioma de Camões para a condição de figura non grata? Instituto? Será...
Cultural? O caraças.