quarta-feira, novembro 23, 2005

Coisas de se referendar: a Ota


A questão da Ota, de braço dado com o abuso a grande velocidade que poderá constituir o TGV, causou a queda de um ministro, na altura frugal em que o reinado de Sócrates parecia sorver ainda os últimos laivos de um curto estado de graça.
A saída de Campos e Cunha conheceu, desde logo, o tipo de contorno pouco digno que conhecem as chicotadas psicológicas do futebol. Oriundo dos meios académicos, docente conceituado e arrazoado, Luís Campos e Cunha foi relegado para a posição de Édipo perante a esfinge, com um problema bicudo entre mãos.
Campos e Cunha, como Édipo, parece ter colhido do monstro (entenda-se do estado pouco promissor do país) a resposta correcta. Ao contrário de Édipo, o antigo ministro das Finanças foi esfrangalhado por acertar e saiu em desacerto, recebendo o tratamento que recebiam nos regimes soviéticos os desalinhados.
Sócrates não perdeu tempo. Substituiu Campos e Cunha por um apaniguado, um homem que se não é do aparelho, se mostrou desde cedo aparelhado com a antecâmara dos interesses que pululam em torno de ambos os projectos referenciados.
Urdiu também de nódulos de contradição uma política que parecia tomar um certo rumo no que respeita a uma certa mitologia dos costumes, dos direitos adquiridos ao combate ao défice do Estado.
Com a defesa acérrima, apologética do que são as prioridades socialistas, dos projectos da Ota e do TGV, Sócrates desfraldou a bandeira de uma política pública despesista, acomodada à medida certa dos interesses da clientela socialista, dos financiadores do clã do Largo do Rato, dos caciques eleitorais que o PS tem espalhados por esse país.
As prioridades socialistas, encimadas pelos gigantescos elefantes brancos que a Ota e o TGV se poderão vir a revelar, são sintomáticas do desprezo a que o governo, a classe política e, cada vez, mais o Estado (amalgamado entre ambos) votam os cidadãos de um país que teria tudo para ser um país de fácil governo.
Relativamente pequeno, com uma população nunca excedentária, com uma frente oceânica considerável e alguns recursos sub-aproveitados, Portugal é cada vez mais um imenso labirinto onde o erro é congénito e aos erros se acrescentam os erros, numa espiral que conduz tendencialmente à extinção. Da crença na viabilidade do país, na crença no sistema político que se diz democrático, mas sobretudo na extinção de uma ideia de futuro.
Mais grave se torna a questão da Ota quando nomes como Miguel Beleza e Ludgero Marques apontam a inviabilidade do projecto a largo prazo e a falta de bom senso do governo. Quanto são os próprios patrícios os primeiros a atirar as pedras, o que pode dizer a plebe?
A plebe não acredita. Tanto que os jovens procuram fugir do país como se ele fosse um Vietname ou uma Bósnia. Tanto que os portugueses calam mais do que consentem e apontam já o dedo ao ideal democrático.
E em boa verdade, tendo em conta a forma como a discussão pública do empreendimento da Ota se fez ontem, poderá existir razões para tal. Desde logo porque não houve discussão pública: houve, na Gare Marítima de Alcântara, a tomada de uma decisão por parte do governo e a tentativa de a justificar. Depois, porque o exercício democrático deveria obrigar à clarificação total dos inúmeros rumores que alicerçam o projecto da Ota, começando pelo esclarecimento do nome dos possíveis investidores e das razões que presidem ao interesse do investimento privado.
Em última instância, porque se Portugal fosse verdadeiramente uma democracia, questões como a da Ota e a do TGV, que mexem com o bolso de todos os portugueses e colocam em mate a viabilidade financeira do país, seriam obviamente decididos pela vontade soberana dos portugueses, num exercício directo de democracia. E, nesse sentido, de que melhor instrumento dispõe a democracia que não o referendo para saber o que pensam os portugueses de TGV’s, aeroportos e outros que tais?