quinta-feira, novembro 24, 2005

Os descrentes e a montanha


Sou como Tomé. Há a fé que me falta e a temperança que não basta. Juntos, conjugados ambos os factores, tendem a colocar-me a meio de um êxodo bíblico, quase sempre em fuga num deserto de dúvidas que seriam de fácil resposta se a aritmética das escolhas ou optasse pela negação absoluta ou pelo absolutismo da crença.
No fundo, existe a vontade de acreditar num deus bíblico, cristológico, pentecostal. Apesar dos erros dos homens, apesar dos séculos dos séculos, apesar das contradições presentes, da acção da Igreja em certas questões.
O uso condenado do preservativo, a insistência no celibato dos padres, a quase excomunhão dos homossexuais, as reticências à ordenação de mulheres, a posição das hierarquias da Igreja no que toca à esfera da sexualidade incorporam factores, admito, que empurram muitos como eu, a meio caminho entre o nada e qualquer coisa, para um limbo ainda mais fundo de cepticismo.
Não sou ainda assim daqueles que disparam, de uma forma muito proletária e quase estalinista, contra os preceitos e a ortodoxia da Igreja, independentemente da invocada influência que o pensamento eclesiástico poderá ou não ter sobre uma determinada massa de seguidores.
Antes de mais, porque não creio que a Igreja tenha, algum dia, que se conformar com preceitos democráticos ou, hipotéticamente, referendar mudanças eventuais no que respeita às linhas da doutrina social que defende.
É que, ao contrário da participação na vida cívica e na vida política, onde todo e qualquer indivíduo é alinhado de acordo com uma cartilha constitucional de direitos e deveres que lhe concede o lugar comum da cidadania, o alinhamento e a participação na vida e na fenomenologia da Igreja depende única e estritamente de um preceito: a fé.
Não se é católico por direito, é católico porque se crê. Sou como Tomé, disse-o a príncipio. Gostava de acreditar um tanto mais. Mas o acreditar um tanto mais seria correr o risco da contradição, alinhar pela doutrina e pelos dogmas da Igreja e não poder pactuar com a condenação do preservativo quando milhares de pessoas tombam anualmente em África, depredadas por esse flagelo chamado SIDA.
Desde sempre me foi dado parecer que é mais fácil para Maomé (usando um protagonista de outra religião) ir à montanha, do que a montanha descer a Maomé. Quer isto dizer, tendo em conta os argumentos esboçados anteriormente, que o mais lógico em toda a discussão em torno das eventuais ou desejadas reformas da doutrina social da Igreja é que esta adquira, para críticos e incomodados, o condão de batalha quixotesca. Numa suma bem portuguesa, aos incomodados taalvez não reste outra opção que o ter que se mudar.
É que os que combatem o moínho parecem condenados a seguir caminho com as velas sempre alçadas sobre a linha do horizonte. Se tiver que cair ou que ser remodelado, sê-lo-à por si, por um moleiro caritativo que queira de boa vontade aplicar uma nova demão de cal sobre a cal que o tempo mastigou.
A Igreja teve em João XXIII um moleiro da índole, limpou as teias de aranha à estrutura, arejou-a. Queixam-se muitos agora que de novo a Igreja necessita de rearranjo, que vive abaulada sobre si mesma, sobre a rigidez dos preceitos.
A esses resta uma solução. Relegarem-se eles mesmos para uma travessia do deserto. Uma travessia que não deixa de ser custosa se, como acontece comigo e com muitos, se acredita e se quer acreditar no mínimo e no máximo, na magnitude e na esperança. Aos outros, aos que não acreditam, que não temem e que não crêem, invejo particularmente uma certa forma de liberdade. Não percebo é porque, sendo livres, continuam a esbarrar com insistência contra a gaiola de que se libertaram.