sexta-feira, novembro 25, 2005

Os descrentes e a montanha 2

Caro JVN,

Apartem-se as águas. A apologia de que uma instituição, seja ela a Igreja, a maçonaria ou qualquer outra, possa constituir um bastião privilegiado no âmbito das hostes do Estado é medieval, perigosa e nunca por mim foi subscrita a momento algum.
A tal cartilha de direitos e deveres invocada é o único garante, em muitos aspectos, da cultura da tolerância que advoga. É suposto que garanta também o exercício da justiça e o pressuposto da igualdade e é deste modo que é legítimo que continue a ser urdida a soberania do Estado.
Se um padre, se um rabino, se um imame roubam, matam ou violam, a única preceito que se pode exigir ao Estado e aos seus tribunais é que os julgue e os condene pelas faltas e pelos actos praticados.
Agora, devem ser julgados pelos seus actos e nunca pela fé que professam ou pela instituição que representam. O mesmo seria julgar Catalina Pestana pelos eventuais abusos sexuais do processo Casa Pia, o mesmo seria eliminar todo o rebanho pela espondilose do cordeiro.
A inflexibilidade da Igreja perante a homossexualidade e perante a irredutibilidade da ordenação de padres homossexuais, que tão escandalizado o deixa, é - dentro do que são os valores ou mesmo a doutrina da instituição - a única resposta lógica, para quem, como o Vaticano, afirma o primado da vida e tem na imagem da tríade familiar constituída por Maria, por José e por Cristo, um exemplo.
É que, entre a hipocrisia (como diz) e a contradição, para instituições como a Igreja e outras que tais, importa menos não agradar a alguns do que deixar subsistir o grão do contraditório; do que defender de forma intransigente a vida enquanto manifestação e deixar subir ao púlpito alguém que defende ou se coaduna com um tipo de relação que mete em causa os próprios valores defendidos pela Igreja enquanto instituição.
No fundo, o que JVN e os críticos pedem, é que a Igreja se faça transgénica: que se assemelhe na forma, na cor e no brilho a uma maçã, mas que saiba a pêra.
A questão aqui é que, depois de operadas as modificações o que resta não é uma maçã, nem uma pêra, mas uma coisa completamente diferente.
Ao abrir as portas à contradição, a Igreja condena-se a não ser mais a Igreja, a ter um corpo de valores permeáveis e flexíveis e deixa de ter quer o espaço, quer a cadência para afirmar aquilo que foi durante dois milénios a raiz das suas posições. Não se trata tanto de uma questão de ortodoxia. É, sobretudo, uma questão de sobrevivência.
Por outro lado, não é dificil constatar que entre o exercício da hipocrisia e o da contradição, se postula uma diferença de extensão rísivel. O que para JVN constitui hipocrisia para muitos não o será. Uma contradição, um desdito, é o sempre.
Por fim, subscrevo o repúdio de JVN "às estupidezes nas estruturas com poder". Mas gosto de orientar esse mesmo repúdio para questões mais tangíveis e menos sectorizadas. Questões como o desbarato dos dinheiros públicos e a insistência em projectos megalómanos. Questões como a da macrocefalia da divisão dos recursos, com hospitais que comportam mais médicos do que camas e ainda assim o que temos é um sistema nacional de saúde que não funciona. Afligem-me mais este tipo de abusos e de hipocrisias porque jogam com a saúde e com a vida das pessoas como se fossem berlindes.
É que estúpidos com poder e no poder não são apenas os que promovem a defesa de um código de valores em que acreditam, por muito arcaico ou restritivo que ele possa ser. Estúpidos e hipócritas, com poder ou sem ele, são os que defendem um modelo de desenvimento que emancipa o crescimento económico e a liberalização tanto de transacções, como de práticas, como de costumes e a todos eles subtrai o mais importante: a dimensão humana.
Estúpidos são os que abrem os olhos à globalização e à abertura dos mercados mas exorcizam as diferenças entre os povos. Exorcizam a pobreza, a depredação, a miséria.
Estúpidos com poder são os que conhecem o saldo pouco promissor das contas de um país e concebem aeroportos e planos megalómanos para saldar dívidas e ambições com o compadrio de certos interesses privados.
Estúpidos sem poder são os outros, os que aplaudem e os que acatam, os que colocam as bandeirinhas nas janelas e soltam vivas e hurras por amor à camisola. Não há aí também estupidez? Hipocrisia?
De resto, subscrevo o outrora dito. Não pactuo de todo com alguma da ortodoxia da doutrina social da Igreja, mas não creio ter nem legitimidade, nem poder para exigir que esta faça traição de si mesmo pelo meu descontamento. Uma vez mais. Os incomodados que se mudem, que inventem novas religiões, onde possam colocar ministros homossexuais a casar felizes e promissores casais de lésbicas ou de gays, que criem um código de valores que os realize. Não é a isso, afinal, que almejam?