Os que falam ...
São Tomé e Príncipe é um dos países mais inóspitos do mundo. Duas ilhas e uns quantos ilhéus luxuriantes, moldados num caldo morno de isolamento e de esquecimento. Quem por lá passou fala de um tempo outro, de uma tranquilidade inaudita e de uma espécie de degradação maravilhosa. Aos são tomenses que se decidem pela permanência sobre o fogo do Equador pouco mais sobra que a imaginação e que um manto de um verde que esmaga.
Há uns anos parece que por lá encontraram petróleo. A avidez pelo ouro negro fez com que pela primeira vez em muitos anos o mundo olhasse para o arquipélago e desenterrasse do mapa o semblante das duas ilhas.
Os dois territórios terão sido, porventura, os últimos quinhões do feudalismo medieval português. Fora do mundo e fora de tempo, no São Tomé das roças e da malária, a miséria substituiu a escravatura e durante anos o que restou foi um povo a olhar o mar por querer partir.
Frágil, pobre, pequeno na sua pequenez, o país não soçobrou. Mitigou o isolamento e foi fazendo o que pode, com uma ou outra ajuda. Ontem, Fradique de Menezes cuspiu
na realpolitik e, mostrou na 62a Assembleia Geral da ONU, que os amigos não se apunhalam.
Duas no código, uma na ferradura
A 1 de Outubro próximo entra em vigor o novo regime do Código da Estrada.
A formalidade passa-me ao lado. Não é que a ignore ou que as lides de um dos códigos legislativos com maior incidência nos trâmites do quotidiano me sejam desinteressantes. A razão é outra, simples e óbvia: não conduzo e o governo decidiu legislar para os que conduzem, aceleram e estacionam.
Eu, que não conduzo, não acelero e não estaciono, fico de novo votado a uma penumbra que, convenhamos, me incomoda.
A partir de 1 de Outubro há um novo Código da Estrada em vigor e, tal qual o antigo, os que não conduzem e - como eu - se limitam a atravessar a estrada, ficam de novo sem saber quais são afinal os seus direitos e as suas obrigações.
Quando estudava na universidade foi-me dito que havia signos, símbolos e objectos que tinham, por si mesmos, valor linguístico e uma performance própria: o fumo, por exemplo, deveria ser lido como um indício da existência de fogo. Uma passadeira no coração de uma estrada como uma evidência de uma espécie de refúgio.
Não é necessário ter-se noções de semiótica para se respeitar uma passadeira. Todos aprendemos desde pequeninos que a "zebra" é o local que nos leva ao outro lado da rua em segurança.
Segurança que em Macau não existe porque existir ou não existir passadeira pouca diferença faz. É um ofício perigoso, quase um mister à Indiana Jones, este de se atravessar a rua até ao outro lado.
O ano passado, ali à frente do Pacapio, uma velhinha (daquelas quase sumidas, enrugadas como os trapos) foi abalroada à minha frente. Seguia em pleno coração da passadeira. O choque não foi violento, mas a senhora ficou estatelada ao comprido com uma dúzia de mirones a inteirar-se da tragédia.
Do carro, com matrícula dupla, saiu um fulano que me pareceu menos chocado que impaciente. Gesticulava e cuspitava palavras que me pareceram assanhadas, apontando a unhaca à velhaca ali estendida. Tem alguma coisa que atravessar passadeiras, diabo da velha!
Contive-me para não lhe ir ao focinho: dois passos mais e tinha sido eu.
À frente do Pacapio não há semáforos: a zebra zurra por si só e é quem mais ordena. Perdão! Estamos em Macau: a zebra é quem mais devia ordenar. Nunca o fez e pelos vistos não o virá a fazer tão cedo.
A 1 de Outubro próximo, o novo código da estrada entra em vigor. Vou ver ainda se até lá arranjo um exemplar, com as coimas, as mudanças e as alterações todinhas.
Pode ser que venha a dar jeito da próxima vez que eu me borrar todo quando a velhinha à minha frente for apanhada por um carro mesmo mesmo no coração da passadeira.
Esta semana fez anos...
... provavelmente a voz mais plural de Macau.