segunda-feira, novembro 28, 2005

Os descrentes e a montanha 3

Vasco Pulido Valente sobre a proibição da ordenação de homossexuais decretada pela hierarquia da Igreja. Ir ao que interessa sem os pruridos enfadonhos da correcta politiquice:

"A Igreja, se goza ainda de certos previlégios, já não domina a política e a
sociedade em Portugal. O que ela aprova ou desaprova já não domina a política e
a sociedade em Portugal. O que ela aprova ou desaprova já não determina ou
influencia ninguém, ou quase ninguém. É uma entidade privada, com a sua lei e os
seus fiéis, que aceitou cordatamente "o semiliberalismo" do regime e não
incomoda ou se não tenta impor ao cidadão comum. Claro que defende, como deve, a
sua doutrina, usando de resto de um direito universal. Seria estranho que não
defendesse. E não se percebe por que razão isso ofende, ou irrita, quem não é
católico. Se a Igreja se recusa a ordenar homossexuais, pior para ela. Que
homossexual precisa de uma Igreja que o condena e o humilha?"


Nostalgia Nr 3 (A neve)



Os dedos carnalmente rosa. Uma orelha sanguínea, vermelho brasa no frio raso da manhã. Um contrasenso, um semáforo no meio do branco que a noite derramou. À noite, a noite. O frágil esvoaçar dos flocos abafa o latido dos cães, adormece a própria madrugada, silencia os pássaros. Há a ausência e a plenitude pela manhã, o vento que rasga a quietude, o nevão que amaina, o branco que abraça árvores, telhados, o fundo do horizonte, as serras veladas, uma utopia fria, monocromática, grávida de delicadeza.
Nas ruas, o registo dos passos, o vestígio geométrico do calçado, os que subiram a rua, os que a desceram, as intenções despidas de um corpo e o frio, sempre o frio, apetecido porque condimenta o branco espartilhado pela imensidão, faz da lareira a companheira imprescindível do montanhês.
Tudo o resto, depois. Homens efémeros, teratológicos, que despontam na beira da estrada, declives, barrancos, caminhos que se transformam, a roupa transformada por uma epifania húmida, sem água que escorra e que corra, o ensopado mastigado das toalhas depois do banho. Neva por aqui. E eu tão longe.

De pequenino ...

A terceira história. Pequenos bons exemplos.

Entropia

Europa em discussão durante o dia de hoje no Intituto Politécnico de Macau. Primeira metade da primeira sessão e um ligeiro eurocepticismo que, temo, possa ganhar raízes. Debate-se a dinâmica da cooperação entre a União Europeia e a China, a tónica colocada sempre nos "global issues", as questões globais a que se não pode fugir, a macrocefalia económica, a procura de novos mercados e de mão de obra mais competitiva.
O maior ganho no fim é o dos consumidores, eis o argumento final. Os consumidores que poderão encontrar no mercado produtos a preços mais baixos, maior concorrência, maior qualidade. Temo - e daí o eurocepticismo crescente - é que as estratégias de crescimento e de cooperação se destinem cada vez mais aos consumidores e cada vez menos aos cidadãos. A fronteira entre uns e outros começa a ser - reconheço - de certa forma, indelével. Mas existe.

sexta-feira, novembro 25, 2005

Os descrentes e a montanha 2

Caro JVN,

Apartem-se as águas. A apologia de que uma instituição, seja ela a Igreja, a maçonaria ou qualquer outra, possa constituir um bastião privilegiado no âmbito das hostes do Estado é medieval, perigosa e nunca por mim foi subscrita a momento algum.
A tal cartilha de direitos e deveres invocada é o único garante, em muitos aspectos, da cultura da tolerância que advoga. É suposto que garanta também o exercício da justiça e o pressuposto da igualdade e é deste modo que é legítimo que continue a ser urdida a soberania do Estado.
Se um padre, se um rabino, se um imame roubam, matam ou violam, a única preceito que se pode exigir ao Estado e aos seus tribunais é que os julgue e os condene pelas faltas e pelos actos praticados.
Agora, devem ser julgados pelos seus actos e nunca pela fé que professam ou pela instituição que representam. O mesmo seria julgar Catalina Pestana pelos eventuais abusos sexuais do processo Casa Pia, o mesmo seria eliminar todo o rebanho pela espondilose do cordeiro.
A inflexibilidade da Igreja perante a homossexualidade e perante a irredutibilidade da ordenação de padres homossexuais, que tão escandalizado o deixa, é - dentro do que são os valores ou mesmo a doutrina da instituição - a única resposta lógica, para quem, como o Vaticano, afirma o primado da vida e tem na imagem da tríade familiar constituída por Maria, por José e por Cristo, um exemplo.
É que, entre a hipocrisia (como diz) e a contradição, para instituições como a Igreja e outras que tais, importa menos não agradar a alguns do que deixar subsistir o grão do contraditório; do que defender de forma intransigente a vida enquanto manifestação e deixar subir ao púlpito alguém que defende ou se coaduna com um tipo de relação que mete em causa os próprios valores defendidos pela Igreja enquanto instituição.
No fundo, o que JVN e os críticos pedem, é que a Igreja se faça transgénica: que se assemelhe na forma, na cor e no brilho a uma maçã, mas que saiba a pêra.
A questão aqui é que, depois de operadas as modificações o que resta não é uma maçã, nem uma pêra, mas uma coisa completamente diferente.
Ao abrir as portas à contradição, a Igreja condena-se a não ser mais a Igreja, a ter um corpo de valores permeáveis e flexíveis e deixa de ter quer o espaço, quer a cadência para afirmar aquilo que foi durante dois milénios a raiz das suas posições. Não se trata tanto de uma questão de ortodoxia. É, sobretudo, uma questão de sobrevivência.
Por outro lado, não é dificil constatar que entre o exercício da hipocrisia e o da contradição, se postula uma diferença de extensão rísivel. O que para JVN constitui hipocrisia para muitos não o será. Uma contradição, um desdito, é o sempre.
Por fim, subscrevo o repúdio de JVN "às estupidezes nas estruturas com poder". Mas gosto de orientar esse mesmo repúdio para questões mais tangíveis e menos sectorizadas. Questões como o desbarato dos dinheiros públicos e a insistência em projectos megalómanos. Questões como a da macrocefalia da divisão dos recursos, com hospitais que comportam mais médicos do que camas e ainda assim o que temos é um sistema nacional de saúde que não funciona. Afligem-me mais este tipo de abusos e de hipocrisias porque jogam com a saúde e com a vida das pessoas como se fossem berlindes.
É que estúpidos com poder e no poder não são apenas os que promovem a defesa de um código de valores em que acreditam, por muito arcaico ou restritivo que ele possa ser. Estúpidos e hipócritas, com poder ou sem ele, são os que defendem um modelo de desenvimento que emancipa o crescimento económico e a liberalização tanto de transacções, como de práticas, como de costumes e a todos eles subtrai o mais importante: a dimensão humana.
Estúpidos são os que abrem os olhos à globalização e à abertura dos mercados mas exorcizam as diferenças entre os povos. Exorcizam a pobreza, a depredação, a miséria.
Estúpidos com poder são os que conhecem o saldo pouco promissor das contas de um país e concebem aeroportos e planos megalómanos para saldar dívidas e ambições com o compadrio de certos interesses privados.
Estúpidos sem poder são os outros, os que aplaudem e os que acatam, os que colocam as bandeirinhas nas janelas e soltam vivas e hurras por amor à camisola. Não há aí também estupidez? Hipocrisia?
De resto, subscrevo o outrora dito. Não pactuo de todo com alguma da ortodoxia da doutrina social da Igreja, mas não creio ter nem legitimidade, nem poder para exigir que esta faça traição de si mesmo pelo meu descontamento. Uma vez mais. Os incomodados que se mudem, que inventem novas religiões, onde possam colocar ministros homossexuais a casar felizes e promissores casais de lésbicas ou de gays, que criem um código de valores que os realize. Não é a isso, afinal, que almejam?

quinta-feira, novembro 24, 2005

Os descrentes e a montanha


Sou como Tomé. Há a fé que me falta e a temperança que não basta. Juntos, conjugados ambos os factores, tendem a colocar-me a meio de um êxodo bíblico, quase sempre em fuga num deserto de dúvidas que seriam de fácil resposta se a aritmética das escolhas ou optasse pela negação absoluta ou pelo absolutismo da crença.
No fundo, existe a vontade de acreditar num deus bíblico, cristológico, pentecostal. Apesar dos erros dos homens, apesar dos séculos dos séculos, apesar das contradições presentes, da acção da Igreja em certas questões.
O uso condenado do preservativo, a insistência no celibato dos padres, a quase excomunhão dos homossexuais, as reticências à ordenação de mulheres, a posição das hierarquias da Igreja no que toca à esfera da sexualidade incorporam factores, admito, que empurram muitos como eu, a meio caminho entre o nada e qualquer coisa, para um limbo ainda mais fundo de cepticismo.
Não sou ainda assim daqueles que disparam, de uma forma muito proletária e quase estalinista, contra os preceitos e a ortodoxia da Igreja, independentemente da invocada influência que o pensamento eclesiástico poderá ou não ter sobre uma determinada massa de seguidores.
Antes de mais, porque não creio que a Igreja tenha, algum dia, que se conformar com preceitos democráticos ou, hipotéticamente, referendar mudanças eventuais no que respeita às linhas da doutrina social que defende.
É que, ao contrário da participação na vida cívica e na vida política, onde todo e qualquer indivíduo é alinhado de acordo com uma cartilha constitucional de direitos e deveres que lhe concede o lugar comum da cidadania, o alinhamento e a participação na vida e na fenomenologia da Igreja depende única e estritamente de um preceito: a fé.
Não se é católico por direito, é católico porque se crê. Sou como Tomé, disse-o a príncipio. Gostava de acreditar um tanto mais. Mas o acreditar um tanto mais seria correr o risco da contradição, alinhar pela doutrina e pelos dogmas da Igreja e não poder pactuar com a condenação do preservativo quando milhares de pessoas tombam anualmente em África, depredadas por esse flagelo chamado SIDA.
Desde sempre me foi dado parecer que é mais fácil para Maomé (usando um protagonista de outra religião) ir à montanha, do que a montanha descer a Maomé. Quer isto dizer, tendo em conta os argumentos esboçados anteriormente, que o mais lógico em toda a discussão em torno das eventuais ou desejadas reformas da doutrina social da Igreja é que esta adquira, para críticos e incomodados, o condão de batalha quixotesca. Numa suma bem portuguesa, aos incomodados taalvez não reste outra opção que o ter que se mudar.
É que os que combatem o moínho parecem condenados a seguir caminho com as velas sempre alçadas sobre a linha do horizonte. Se tiver que cair ou que ser remodelado, sê-lo-à por si, por um moleiro caritativo que queira de boa vontade aplicar uma nova demão de cal sobre a cal que o tempo mastigou.
A Igreja teve em João XXIII um moleiro da índole, limpou as teias de aranha à estrutura, arejou-a. Queixam-se muitos agora que de novo a Igreja necessita de rearranjo, que vive abaulada sobre si mesma, sobre a rigidez dos preceitos.
A esses resta uma solução. Relegarem-se eles mesmos para uma travessia do deserto. Uma travessia que não deixa de ser custosa se, como acontece comigo e com muitos, se acredita e se quer acreditar no mínimo e no máximo, na magnitude e na esperança. Aos outros, aos que não acreditam, que não temem e que não crêem, invejo particularmente uma certa forma de liberdade. Não percebo é porque, sendo livres, continuam a esbarrar com insistência contra a gaiola de que se libertaram.

quarta-feira, novembro 23, 2005

Coisas de se referendar: a Ota


A questão da Ota, de braço dado com o abuso a grande velocidade que poderá constituir o TGV, causou a queda de um ministro, na altura frugal em que o reinado de Sócrates parecia sorver ainda os últimos laivos de um curto estado de graça.
A saída de Campos e Cunha conheceu, desde logo, o tipo de contorno pouco digno que conhecem as chicotadas psicológicas do futebol. Oriundo dos meios académicos, docente conceituado e arrazoado, Luís Campos e Cunha foi relegado para a posição de Édipo perante a esfinge, com um problema bicudo entre mãos.
Campos e Cunha, como Édipo, parece ter colhido do monstro (entenda-se do estado pouco promissor do país) a resposta correcta. Ao contrário de Édipo, o antigo ministro das Finanças foi esfrangalhado por acertar e saiu em desacerto, recebendo o tratamento que recebiam nos regimes soviéticos os desalinhados.
Sócrates não perdeu tempo. Substituiu Campos e Cunha por um apaniguado, um homem que se não é do aparelho, se mostrou desde cedo aparelhado com a antecâmara dos interesses que pululam em torno de ambos os projectos referenciados.
Urdiu também de nódulos de contradição uma política que parecia tomar um certo rumo no que respeita a uma certa mitologia dos costumes, dos direitos adquiridos ao combate ao défice do Estado.
Com a defesa acérrima, apologética do que são as prioridades socialistas, dos projectos da Ota e do TGV, Sócrates desfraldou a bandeira de uma política pública despesista, acomodada à medida certa dos interesses da clientela socialista, dos financiadores do clã do Largo do Rato, dos caciques eleitorais que o PS tem espalhados por esse país.
As prioridades socialistas, encimadas pelos gigantescos elefantes brancos que a Ota e o TGV se poderão vir a revelar, são sintomáticas do desprezo a que o governo, a classe política e, cada vez, mais o Estado (amalgamado entre ambos) votam os cidadãos de um país que teria tudo para ser um país de fácil governo.
Relativamente pequeno, com uma população nunca excedentária, com uma frente oceânica considerável e alguns recursos sub-aproveitados, Portugal é cada vez mais um imenso labirinto onde o erro é congénito e aos erros se acrescentam os erros, numa espiral que conduz tendencialmente à extinção. Da crença na viabilidade do país, na crença no sistema político que se diz democrático, mas sobretudo na extinção de uma ideia de futuro.
Mais grave se torna a questão da Ota quando nomes como Miguel Beleza e Ludgero Marques apontam a inviabilidade do projecto a largo prazo e a falta de bom senso do governo. Quanto são os próprios patrícios os primeiros a atirar as pedras, o que pode dizer a plebe?
A plebe não acredita. Tanto que os jovens procuram fugir do país como se ele fosse um Vietname ou uma Bósnia. Tanto que os portugueses calam mais do que consentem e apontam já o dedo ao ideal democrático.
E em boa verdade, tendo em conta a forma como a discussão pública do empreendimento da Ota se fez ontem, poderá existir razões para tal. Desde logo porque não houve discussão pública: houve, na Gare Marítima de Alcântara, a tomada de uma decisão por parte do governo e a tentativa de a justificar. Depois, porque o exercício democrático deveria obrigar à clarificação total dos inúmeros rumores que alicerçam o projecto da Ota, começando pelo esclarecimento do nome dos possíveis investidores e das razões que presidem ao interesse do investimento privado.
Em última instância, porque se Portugal fosse verdadeiramente uma democracia, questões como a da Ota e a do TGV, que mexem com o bolso de todos os portugueses e colocam em mate a viabilidade financeira do país, seriam obviamente decididos pela vontade soberana dos portugueses, num exercício directo de democracia. E, nesse sentido, de que melhor instrumento dispõe a democracia que não o referendo para saber o que pensam os portugueses de TGV’s, aeroportos e outros que tais?

terça-feira, novembro 22, 2005

Nostalgia nr. 2 - Hamburgo


Se é que alguma vez o fomos, necessários ao mundo, um ápice basta para que saibamos que o mundo não se compadece com necessidades, que somos o que somos mas necessários, não, nunca, não o podemos ser se a nossa existência quase nidifica na circunstancialidade, somos menos o fraccionar do pensamento que o estertor da carne e do estertor da carne nascemos e, cuidamos, para que a nossa única glória não seja a mais palpável das misérias, que somos úteis ao mundo e que podemos, pelos nossos gestos e vontades ser-lhe a ele necessários se nem é o seu girar mais rotineiro por nos carregar consigo, nem o tempo mais relapso por o povoarmos e, como tal, cuido que a necessidade que o mundo tem de nós, carne que somos cinza amanhã, se dissipa na epifania do costume, ao mundo fazemos peso e sombra e estorvo, nem sequer enfeitamos, sorte de que as flores podem armar vanglória pois têm ainda, mais que não seja, como que uma presença estética anterior ao próprio arranjo do vocábulo na página 173 do Dicionário Houaiss, versão revista e corrigida, lugar único onde não têm mais poder que “guerra” ou “doença” ou “desastre” ou “morte” no crónico e quotidiano enfeitar da marcha do mundo, pois nem flores nem alegria, nas folhas de um dicionário, rimam com coisa alguma, existem apenas para ser marcas de existência num “metamundo” diminuto perante a existência em bruto desse outro mundo palpável ao qual me custa a acreditar que fossemos necessários, ainda que a cinza dos vivos de ontem se amassasse com o sangue dos vivos de hoje para que existíssemos, não digo carnalmente, que o mundo vagão de carga e transporte também tem tara limite, mas apenas mera consciência, como que uma memória límpida e tão translúcida que possam ser revistos por palavras de dicionário e agonias de coração os séculos dos séculos e os minutos perdidos de todos os dias e compreendidos os gestos e recordadas as mágoas e os momentos e o que mais seja que o mundo, por não ter memória outra que não seja a da luz e a dos livros, parasitou e carcomeu e digeriu sem que a constância irrepreensível do paladar restasse como incómodo ou indicio ou culpa, mas o mundo é assim mesmo e assim mesmo é o Homem, um peca por não ter memória nenhuma, o outro peca por a ter egoísta e curta de mais, memórias só as minhas, Obrigado, e isso de memória do mundo o que é? o que pode ser que seja, se o mundo é um mono apático e patético, uma criança trissomática que nem de si tem consciência? falassem estes que tenho aos pés e que a terra provavelmente deglutiu e dir-vos-iam que este cemitério de Ohlsdorf que é um mundo dentro do mundo, ou a memória de um mundo emprenhando outro, quem passa distraidamente nem a reverência mínima do susto desenvolve, afinal debaixo de tanto larício, de tanto abeto, de tanta tília, de tanto verde e tanta pétala o que existem são mortos, Senhora! não rosas, mortos e húmus e vida de novo, mas só à superfície, como se a morte se encontrasse musculada à espreita debaixo de uma derme de verdura, tanta, que se torna agradável a ideia de se morrer por ali, de se divagar por entre os nomes como agora divagam vós, leitores prováveis, entre estas palavras, Friedrich Lehman, geb 12-02-1922 ges 07-07-1944, à direita os Murnau, nome de realizador e portanto de enciclopédia, mas estes humilíssimos e não só anónimos porque esta pedra existe, é concreta e nela os nomes August e Heinrich, pai e filho, ali afloram sem paladar, apenas palavras insossas, pudéssemos saber algo mais, que pai e filho correram juntos pelas margens do Elba, atiraram a sediela aos peixes e calhaus às aves e a pedra deixaria de o ser, para ser como que o crânio branco que aflora de uma tragédia e que Hamlet tem suspenso na palma da mão, Terás sido ou não? eis a mais falaciosa das questões, porque ser ou todos somos ou não somos, termos sido depende da elasticidade do tempo para apagar tudo menos o nome que temos para o mundo sem que o mundo dele tenha a mais pequena das necessidades, sendo verdade que em tempo algum temos verdadeira noção do nome que temos e depois da morte que falta nos faz o nome, nenhuma, que o digam August e Heinrich Murnau, dois nomes numa pedra, lidos ao vento da indiferença por quem divaga pelas ruas do campo santo, como foram já lidos também os nomes dos valentes soldados da 1ª Guerra, sucumbir que sucumbiram em nome da importância do nome do Kaiser Guilherme, os nomes dos mortos das cheias de 1962, da embrulhada spartakista, dos mortos anónimos e dos mortos antónios, dos mortos de fardelagem e dos mortos que se finaram de morte circunstancial, morte morrida e não matada que, esses, ocupam quarteirões, há os dos escombros de Barmbek e de Altona, há os das ruínas de Altstadt e os de St. Pauli, os de Haarburg e os de todo o lado, cinquenta e cinco mil rostos que foram sonhos e carícias e carne em trânsito e carne em vida e são agora como que linhas graníticas onde Deus escreveu e prescreveu e, no julgar dos vivos, escreveu e prescreveu bem, ele que escreve direito em linhas tortas e os tem, ao firmamento de mortos de Ohlsdorf e à memória do pulsar do mundo que os nomes e os números dissimulam, resgatados da consciência que devia de ser da Humanidade, como se o mundo nunca tenha sido mais que a sombra que se estende, tranquila, ao longo de uma alameda de faias e de larícios.
.
(Texto escrito em 4 de Junho de 2004, à sombra das árvores nas margens do Alster e publicado uma primeira vez no defunto blog www.papaia-express.blogspot.com)

South Mark

Nostalgia nr. 1

Saudade. De quando a publicidade dos bancos nos jornais e na televisão falava de contas poupança qualquer coisa.

Tragicómica Lusitânia

Nem Shakespeare se lembrava de fazer melhor. A corrida para as presidênciais em Portugal ganha cada vez mais desenvoltos contornos de tragicomédia, sendo que o trágico da questão (que não morra ninguém em palco, é sobretudo e ainda o que se pode pedir) sobra sempre para a barca em desmando que é Portugal.
Não tivessemos já um Shylock não hebreu que dispara com ódio visceral e obcessivo contra um Quixote que de cavaleiro da Mancha só tem a magreza, não andasse por ai a verberar um Arlequim de barba, desprezado por qualquer um dos seus amos, e um Robin Goodfellow com um rol pedante de travessuras na garganta, faria falta no coração do palco cénico mais distinta figuraça que este Lanceloto Gobbo?

Esses índios dos portugueses

O Anchieta talvez não ficasse agradado. A maior parte dos outros pérfidos Jesuítas também não. O Vieira, se tivesse um blog, seria talvez de pregação on-line, do alto de um púlpito virtual e, de lá, talvez se lembrasse de uma secção próxima daquilo que é o Tupiniquim. O blog, engendrado pelos portugueses Luís Galrão e Fernando Sousa, colheu o favoritismo do público nos Prémios Internacionais Weblog da Deutsche Welle 2005, os BOB's (Best of Blogs) do génio cibertrónico.
A página é um ancoradouro sobre o quotidiano, o futuro e a fenomenologia muito própria dos povos indígenas do coração da América do Sul, em particular as tribos que habitam a meseta brasileira da região amazónica.
Os autores do weblog distinguido pelo público reúnem notícias e comentários sobre questões indígenas e assinalam na blogosfera uma feliz tendência no que respeita à mundividência dos portugueses, que parecem tentados ao "reachamento"do Brasil para além dos traços de Vera Cruz à flor da pele: novelas, samba, Copacabana e Bossa Nova.
A preferência do público não coincidiu, ainda assim, com a do júri do concurso que seleccionou os melhores blogs do ano que, um mês provindo, se dá por finado. "Más respecto, que soy tu madre" foi eleito o melhor blogue do ano nos Prémios Internacionais Weblog da Deutsche Welle. Da autoria de Hernán Casciari, um argentino com morada fixa em Barcelona, a página faz a apologia dos Bertotti, uma família fictícia com raízes no país das pampas.
Destaque ainda para o melhor blog na categoria de multimédia, o francês Blog à la ciboulette, uma página assumidamente francesa em que os seus dois autores, Miss Gally e Georgette, semeiam a web com as diatribes do seu dia-a-dia.

quinta-feira, novembro 17, 2005

A luz da manhã no teu capacete


Acordei com os motores do Grande Prémio zumbetando o fresco da manhã. Os sons assaparam às sete e dois, guinaram a velocidade louca às sete e sete (make a wish, i tought), quase que saíam de estrada às sete e cinquenta e um, entraram pelas oito a assapar (com o fulgor prosélito da luz matinal) e enxotaram o sono para um deserto de vigília, quando sonhava com aviões que bombardeavam carros rápidos como balas numa daquelas cidades que existem apenas nas abas do inconsciente, algures entre o deserto e a luz da manhã no teu capacete.

terça-feira, novembro 15, 2005

O mais velho conto sem fadas do mundo ...

Era uma vez uma rapariga que perguntou a um rapaz:
- Queres casar comigo?
Ele respondeu:
- Vai-te foder, ó Eva. Já me fodeste uma vez com a história da maçã ...
Ela pediu desculpa, sentou-se a comer uma reineta e sentiu-se ácida por dentro. Fim.

Novos Contos Moralistas

Era uma vez uma menina que cresceu bela. Era toda olho mareado, caracoletas louras derramadas em cachoeira, curvas compassadas, nem um lípido a mais, nem uma pestana a menos. A menina, que tinha uns pais com olho para o negócio e era loura e pouco burra disse para si mesma desde cedo:
- Hoder el trabajo, tio. Vou é viver às custas deste corpaço
E assim foi. O olho mareado rendeu muita sessão fotográfica, a menina mostrou o rabinho e a maminha na passerelle e tornou-se numa pop star, glamour e gajos, glamour e gajas, droga, o catano e coisas que tais.
A menina tinha namorado, tinha namorada, por vezes tinha namorado e namorada ao mesmo tempo. Tinha amigos heroinómanos e cocainómanos e outros que citavam Schoppenhauer e Said e os ideais de esquerda enquanto comiam hamburgueres do Macdonald's.
Com tanto que o corpaço lhe deu a menina engrossou um ego do tamanho de um lutador de sumo. Falava para o espelho como na banda desenhada,
- Espelho, espelho meu, há alguém mais galdéria do que eu?
e ao espelho se respondia,
- Qual que, tia! Es a a mais galdéria, la mas guapa, la mas guarra. Lo eres todo. Todo.
Um dia a menina foi convidada para uma sessão fotográfica na Schwarzwald, mesmo, mesmo no meio das árvores, com um capuchinho vermelho mais transparente que a luz do dia, um capucho mínimo que lhe deixava as mamárias ao relento.
O cabrão do fotógrafo cismou com o aproveitamento da luz da manhã e a menina lá teve que se levantar cedo, que gramar com duas toneladas de base e de rouge e de sombra e de bâton quando ainda almejava o corpo quente da namorada de um lado e os dedos fortes do namorado do outro.
A chiba da manhã ameaçava coisa feia. A luz de que o fotógrafo falava parecia luz de mausoleu ou de quarto enegrecido e vai não vai cai um aguaceiro filho da mãe de chuva cítrica, acidulada, daquela que faz das árvores cadáveres erectos e apanhou a menina e o capucho mínimo e o fotógrafo no meio do nada.
Os ácidos da chuva e as bases da cara da menina engalfinharam-se, engadelharam volátilmente, reagiram nas maças do rosto da menina como se estas fossem um caldeirão e a menina ficou com o rosto num bolo, com textura dos pastéis de tentúgal e o cheiro das tripas à moda do porto.Tão monstra se tornou que os espelhos se vomitavam todos quando ela se olhava neles.

É a intelectualidade, estúpido ...

Fico com uma azia filha da mãe, com uma vontade de me fazer um tse tung (zedong) de pacotilha à frente de um comité central de purgas maoístas cada vez que alguém se propõe discutir Derrida, Michelle Mourre, o cinema de Michael Haneke ou outras merdices e preciosismos do género e se mostra incapaz de desentorpecer outra saída para a crise de personalidade de que sofre Portugal que não seja: "Entrega-se tudo aos espanhóis..."

Le Boulot

Mois, remóis, quase que engoles a chiba da desfeita mas ei-la que parece peito de frango mastigado, tomba de um recanto dos dentes ao outro, da tolerância ao ódio de estimação, do desmando soletrado a uma caralhada valente, a um enxame de impropérios, o gajo porreiro que se farta de brandura e manda tudo para a terra de sua pertença. Não veio ainda, o dia, mas está para vir.