segunda-feira, janeiro 31, 2005

A Livraria Ideal (tomo 2)

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É bom que se evitem os equívocos: Olivier Rolin não quer para si a condição de viajante-escritor. Atestado liminar na abordagem primogénita que o autor faz ao leitor que embarque em "O meu chapéu cinzento", a renúncia ao clube daqueles a quem o horizonte chama revela uma insuficiência paradoxal quanto à fluência e à força daquilo que é, em Rolin, farto e essencial: a sua escrita.

Negue mil vezes o lugar apetecível da partida e os passos nem sempre seguros da demanda, Olivier Rolin viaja e escreve. Bem. Magnificamente. Com a precisão sensata dos marinheiros habituados e sem a sindicância dos lugares-comuns, sem superfícies que se abismam no tomo do irreal, Olivier Rolin absorve aos portos que o acolhem e às veredas que o abrigam a simples radiância do que existe e daquilo que encontra no que existe um prolongamento tangível de existência.

Nove viagens - tantas quantas a edição portuguesa da obra contempla - confirmam que é, sobretudo, ao viajante que cabe a nunca fácil tarefa de denotar o essencial e de extremar os traços de carácter que fazem de cada destino ou de cada caminho que se cruze, uma porta que se abre sobre o desconhecido, uma possibilidade que se expande sobre a própria expansão possível dos universos próprios aos lugares e às pessoas, ao viajante e ao anfitrião.

Rolin - lido o livro, poderia dizer-se - procura nas suas viagens mais do que aquilo que os olhos lhe podem dar: procura uma alma palpável e visível, uma dignidade outra que não a dignidade banal da fruição da chegada ou da tarefa que se fina. Os seus olhos não prescrutam apenas o visivel, nem esmiuçam ao pormenor o acessivel; são antes olhos que abraçam.

Abraçam a memória, os rostos, as ruas, o carácter e os rasgos de transcendência que é possível abraçar, de tal forma que há uma assimilação essencial da metafísica elementar de tudo o que existe, seja esse tudo o esqueleto, requebrado por lambidelas de fumo, dos armazéns do Chiado ou as igrejas intemporais da Velho Goa ou os ossos abaulados de uma baleia ou ainda (e simplesmente) uma batata grelada: "Semivazia, coberta por uma pele flácida de testículo velho, mas projectando para fora dela, envolvendo-se nela, alimentando-se dela, turgecências cor de larva de insecto, tentáculos passando por todos os esverdeados e malvas cadavéricos, essa coisa digna dos pincéis de Greco e de Goya..."

Existe, pois, nas itinerâncias de Olivier Rolin uma clarividência vasta e de certa forma erudita, que tem no exercício da observação a mais fascinante das condutas: o autor é um jornalista sem as pretensões do jornalismo, que supera todos os lugares comuns que a contemporaneidade impõe e relocaliza ao estímulo primordial o essencial no acto de viajar: viajar é, pois, confrontar-se sem cessar com situações, costumes, coisas novas. Por vezes, é apenas reaprender a olhar o que existe com uma inocência sacripanta que faz de todas as coisas, coisas novas, pássaros que enfeitiçam de simplicidade todos aqueles a quem o horizonte chama.

A ler: Rolin, Olivier, O Meu Chapéu Cinzento, Colecção Pequenos Prazeres, ASA Editores, Porto;

quinta-feira, janeiro 27, 2005

Crítica da Razão Outra

Eu, que de leituras e literaturas conheço pouco - apenas o que leio em horas sôfregas - tenho assistido com um entusiasmo mefistotélico ao duelo de saberes e pareceres que até há algum tempo se ia esplanando por estes lados.Digo mesfistotélico para não dizer que uma tal contenda nutre em mim um entusiamo mafarrico, ainda que tenuemente diminuído pela poída circunstância dos brandos costumes d'hoje.É que um cisma com os contornos que se lhe conhecem no Esplanar é daquelas altercações de outros tempos, em que as discussões, à força da honra que se alevanta e do orgulho que se embandeira, se resolviam de florete em punho ou de olho cerrado sobre a mira do mosquete. Por isso, digo para mim que em certas ocasiões mais valiam os costumes ser mais nobres, ainda que à custa de uma certa aspereza nas façanhas.
A ausência de consequências de monta, que não sejam a troca providencial de uns quantos galhardetes verbais, tira à demanda a carga dramática que torna irrisórias discussões como esta, em questões viscerais, de toada epopeica.
Se assim não fosse, tão rico que tudo seria. Digno das melhores manifestações da praxis romântica, valente e bom seria ver João Pedro George desfraldar a luva branca nas ventas da crítica, como um Castilho ressurrecto, enxotando os Eças e os Anteros.
Justo será dizer que as comparações se devem resumir obrigatoriamente às formalidades do duelo, pois a impressão subtraída é a de que JPG veste mal Castilho. Ou melhor, não merece que lhe assaquem qualquer tipo de ortodoxia (quanto mais a ortodoxia pontifex de Castilho).
Não sei. Talvez se tenham invertido os papéis, na mecânica das provocações; essa é a impressão que suscita a reacção de Rui Falcão, falível, a meu ver, por nela existir algo que soa a uma ingenuidade terrível, a um purismo absorto na forma como a legitimidade de ser dos portugueses é feita.
Se bem me lembro, a contenda teve no seu início um texto de João Pedro George em que a figura prosélita de um taxista de Lisboa ganha, por anuência do autor, os contornos e a substância de um tipo ideal weberiano.
O tipo ideal weberiano é o fulano ou a situação que polariza em si este ou est’outro traço característico – ou generalizações – que são de forma empírica (logo, não científica) assacadas a um grupo, casta ou classe social.
De certa forma, o tipo ideal weberiano é a caricatura que o observador atento traça dos vícios gerais do anonimato, uma radiografia cromática ao civil desconhecido, a abordagem concreta aos trâmites rotundos e militantemente comuns da alma colectiva.
Ter a plena consciência de que existem tais traços de carácter em que, de uma ou de outra forma, todos somos passíveis de incorrer, é reconhecer uma certa dimensão de tangibilidade na forma como os portugueses se apropriam da realidade e de como fundamentam, a partir dessa apropriação, o seu modo de ser e o seu modo de estar perante o outro.
Negar, como nega Rui Falcão, que um taxista da Lisboa contemporânea seria incapaz de proferir algo tão rebuscado e tão pouco compatível com a polida observância das regras do politicamente correcto é afirmar, com um proselitismo selectivo, a elipse do carácter pérfido dos portugueses em favor de uma fragmentação elitista e profundamente estigmatizada da sociedade portuguesa.
O pior dos estigmatismos é o que abafa o cérebro com certos coágulos de intolerância; Rui Falcão, pelo materialismo absoluto com que criticou JPG, parece ser dos que negam aquilo que lhes convém negar apenas para que a percepção que desenvolvem do mundo permaneça impoluta, cor-de-rosa e mais judiciosa que todas as outras.
O amigo Falcão parece ser do tipo correligionário de pessoas que por conivência com as suas próprias crenças ou mediações ignora os podres e os precipícios do ser e louva as grandezas da ideologia às custas da verdade das coisas: ao criticar João Pedro George pelo “Monólogo do Taxista”, Rui Falcão esgota a pertinência dos lugares comuns da cultura portuguesa, mesmo quando estes se revestem do saudável embuço da ironia e, desse modo, nega a residual piada que ainda habita o mais batido sketch humorístico dos últimos anos: “…falam, falam e eu não os vejo a fazer nada pá, fico chatedo com certeza que fico chateado, pá..”
Haverá maior e mais corrente evidência de um tipo ideal, sr. Rui Falcão?

terça-feira, janeiro 25, 2005

Meteorologia

As conversas típicas costumam aborrecer-me. Com os velhos, não troco duas frases em que não fale do tempo, dos sinais da Invernia que se colam às encostas da Serra: a brisa crescendo em fúria e vaidade sobre a copa dos plátanos, fazendo jingar os pinheiros ao extremo férreo de os curvar em lamúrias, rangendo as raízes e os ramos, os borbotos da casca e a aguda existência das agulhas. Quando assim é, a chuva não tarda e os velhos consomem-se, afoitos, na resfolegância das horas.
Antes que chova sumam-se as fronhas dos estendais, recolham-se as cobertas de pelúcia e as falsas caxemiras e os falsos arraiolos. Antes que chova, lancem-se à terra as ervilhas e ao alfobre o feijão-de-trepa e à panela todos os frescos da horta; recolham os animais à cerca e as almas à temperança da lareira.
Com os velhos e com o tempo, uma núvem que engorda de sombra a solidão dos montes promete para as horas mortas da tarde as trompas e as trombetas do juízo final, ainda que este seja líquido e sucedâneo, um céu espesso de xarope de ácer solvendo os telhados e as vidranças, a fúria efémera.
Os velhos. O tempo. O sol, as nuvens, a neblina, os cristais góticos da geada matinal transformam-nos em D. Robertos, marionetas mudas; se o sol brilha, as mantas e as colchas ganham uma vida nova, escorrendo da umbreira das janelas.
Se o céu se turva, são os ânimos que se fecham como se fossem pinhotos agrestes e melindrosos e as palavras que se somem da vontade dos homens e perdem a pertinência e o tino, a substância e a rota. Conversas assim são galeões à deriva, motetos sem plus nem ultra.

sexta-feira, janeiro 21, 2005

O Elogio da Musa

Despojados de sul
cruzam meus dias os meredianos
da tua mão
e todas as coisas em meu caminho
se libertam.
São penas e asas e cordas,
pistas e plataformas de helicópteros
as tuas impressões
na concepção das horas.

Tomo de ti o potencial da claridade
e a delgada filosofia da existência
expande-se por teus olhos
em arraias de espuma desenvoltos
como um espaço que renasce
e em que se firma a refundação
de quem sou e de quem sei.

Poro a poro, silêncio a silêncio
com a mecânica precisão dos relógios
crias em mim mundos novos
onde perco a errância e vejo,
murchas e sideradas,
todas as flores do mal
como se não fosses outro mais
que a luz concentrada,
um anjo de sal sem divindade
ou a pureza recortada
de um rebanho de virtudes,
imaculadas e eternas,
livres nas vermelhas pastagens
do pensamento.

Quando os meus dedos embarcam
nos interstícios brandos dos teus dedos
sinto em ti fluir toda a metafísica,
a vida em fulgência floresce
nos círculos escondidos da tua pele,
macerados em segredo pela saliva solta
da minha língua que te bebe.
Quando traças os teus dias
com a luz farta da manhã
e me tomas pela mão,
acrescentas aos fados e às guitarras
que me embalam
avenidas de palavras radiosas.

Nesses dias - todos os dias
tudo o que é teu que em mim entra
transforma-se na exaltação da tua plenitude
feita flores de cristal e fogo
feita roteiro das cinzas e do tempo
em que juntos escrevemos
os novos evangelhos sinópticos
do amor
e da carne.

quinta-feira, janeiro 20, 2005

Finding Nederland

Coisas que se vêem, metafísicas que se sentem. O sol vai alto sobre o areal da Figueira. Num terreiro entre a praia e a desembocadura do Mondego um punhado de gaivotas enfurecidas disputa um saco de lixo azul ciano.
Cruzo o terreiro e disperso-as sem malícia. As gaivotas ganham para si as horas e levantam em fúria, circulando como abutres a dois palmos da minha cabeça. Em órbitas imperfeitas, uivam melindrosas.
A alguns passos, num canto do terraço, numa pendência quieta sobre a margem do rio, as roulottes e as caravanas do circo. Nas netherlands da Figueira, o mar rugindo a curtos passos, um circo incógnito e as gaivotas.
Na fachada noroeste da maior roulotte, a sindicância dos nomes: Circo Nederland, "el número uno de los circos infantiles. Nunca dele ouvira falar, mas as primeiras vezes existem. O mar chama-me e eu obedeço. A vida tambem é isto: transumância.

terça-feira, janeiro 18, 2005

Santo e Senha

Vão cuidar vocês que é conversa de ressabiado. Dantes o vulgar era que a miséria ou a soberba viesse bater à porta: por muito que se faça a apologia da dádiva, quase ninguém fica radiante quando um desconhecido lhe bate à porta e quase exige uma esmola, ora para alimentar uma catrefada de filhos quase sempre estropiados, famintos e doentes, ora para regressar ao longínquo país de origem.
Não é que eu queira com isto repudiar o potencial da generosidade humana ou reduzir misericórdia de quem dá ao ímpeto da coacção, mas ninguém gosta de dar quando a liquidez das intenções é dúbia. Nesses casos, quem dá, incorre no gesto mais por descarga de consciência ou por caridade religiosa do que própriamente com um interesse convicto na misérrima balada com que quem pede justifica o acto e o argumento.
Há, nesta abordagem, um certo parasitismo sem escrúpulos tolerado, que se suplanta a si mesmo em irrazoabilidade pelo facto de que o acto de doar surge quase como mecanismo de disuasão de outros actos, prováveis e potenciais, se a oferta não for concretizada; a situação encontra um paralelo óbvio na moeda que o automobilista dá ao arrumador de carros para que ele não lhe risque a viatura.
Embora esteja certo de que a medida agradaria a muita gente, este texto não perfaz nenhuma apologia do extermínio dos mendigos, pedintões e outros que tais, nem da sua clausura (como fazia Salazar) num estádio de futebol, para que o país transparente e farto das campanhas publicitárias conserve a aura de preciosismo à custa da censura à muita miséria humana que ainda por aí existe.
Mas este texto, já se disse - outro poderá vir que enverede por uma tal temática - não é sobre a mendicidade. Se antigamente essa forma de "parasitismo" (os apologistas do "políticamente correcto" estão agora putos da vida com a escolha da palavra) social andarilhava de rua em rua e flanqueava todas as casas, nos dias de hoje o parasitismo chega por telefone, bem vestido e muito yuppi.
É verdade que nem num caso, nem em outro nos vemos obrigados a ceder aos esmoleres ou a aturar as patranhas de quem telefona, mas não é nada agradável receber dois e três telefonemas por semana com alguém a querer falar com o titular da assinatura telefónica a propósito de um estudo de mercado sobre um novo produto ou da fabulosa oferta de um serviço de jantar ou de um colchão ou do caramba.
Não é nada agradável, porque, antes de mais, o trinir do telefone é um estímulo um pouco mais eloquente do que todos os outros: a finalidade do telefone, no reduto da privacidade e da intamacia, é a de comunicar, na acepção original de colocar em comum aquilo ou aqueles que comuns já são. Quem tem o aparelho no domícilio usa-o sobretudo de acordo com os seus interesses e, ao menos no que me consta, não tenho interesse nenhum em que me telefonem para casa na tentativa de compunção de um colchão.
Sempre que o telefone toque, eloquente e sóbrio, a esperança é que do outro lado da linha esteja uma voz familiar, reconfortante, absoluta. Quando do outro lado fala uma desconhecida, a pretender dois minutos do meu tempo, apetece-me sempre crachar com o telefone no auscultador. Por uma estranha fraqueza nunca o faço. É nisso que resultam os excessos da boa educação e das linhas da conveniência, o ter que engolir situações desagradáveis ou inconvenientes em troca da brandura dos costumes.
Uma vez terei heroicamente passado das estribeiras. Foi com uma menina de voz rouca que, após um quarto de hora de sucessivo indeferimento, me tentava mostrar todas as vantagens da subscrição de um cartão de crédito que, alegadamente, concedia aos seus titulares vantagens em tudo e mais alguma coisa no que se reporta à fruição quotidiana da cidade do Porto.
Para me convencer, a menina rebateu o meu cepticismo com o genial argumento de que aos titulares de tal cartão o usufruto dos cacifos para bagagem na Estação de São Bento resultaria totalmente gratuito. Pensei seriamente em mudar-me, de armas e bagagens, para um dos referidos compartimentos, um centavo de assoalhada com localização central na capital do Norte. O problema, claro está (e não duvidando das prováveis e possíveis qualidades do cartão), reside num nadazito: a minha vivência do Porto estava a anos luz de ser quotidiana e como a menina insistia, recomendei-lhe meigamente (para não ser inconveniente, mandando-a de volta à mãezinha que a pariu) uma mudança de vida, em que pudesse fazer algo útil sem enganar as pessoas. E desliguei.
Vim a descobrir posteriormente que é possivel abreviar de forma substancial, sem se ser socialmente inconveniente ou mal-educado, uma conversa desta índole. O "santo e senha" para tal está numa única palavra: "desempregado".
É assim que tudo se processa: o telefone toca, corre-se para o telefone, levanta-se o telefone,
- Estou, sim?
- Estou... Boa Tarde! Fala o titular da assinatura telefónica?
(esmorece o entusiasmo)
- Fala sim...
- Eu faço parte de uma empresa de estudos de mercado e se fosse possível...
(apetece mandar a menina à merda, dizer-lhe "Olhe lá, sua vaca..")
- Olhe, minha senhora, desculpe... Mas estou desempregado...
- Ah, está desempregado... Então lamento mas não se enquadra.. Boa tarde.
(desligam do outro lado)
- Boa tarde, passarinho. Vá lá embora e faça favor de não voltar a ligar..
Com desempregados ninguém quer nada, isso é certo. Nem o governo. Por isso é remédio santo, tónico cerebral, elixir das boas conveniências a antecipação da sentença: sou desempregado. Dize-lo acaba por evitar que sejam expelidas as coisas mais atrozes que se pensam. Para que não rematem este texto dizeres ordinários e brejeiros, aqui fica, em estilo almadiano, os mais delicados pensamentos que perpassam quando o telemarketing está no ar:
"Abaixo as empresas de telemarketing. PIM.
Abaixo as meninas que lá trabalham. PIM.
Abaixo a usura e os Dantas que se aproveitam.
Abaixo a PT e os números dissimulados.PIM
As meninas do telemarketing têm a vagina ao pé da boca.
Morram as meninas do telemarketing. Morram.
PIM."

domingo, janeiro 16, 2005

Martunis, o patriota

Mesmo no rescaldo das mais negras tragédias, horas há que são felizes. Para o miúdo Martunis, a felicidade chegou em dose dupla: porque foi reencontrado para a vida quando a família que lhe resta o julgava morto e porque o Campeonato da Europa de Futebol é já uma coisa pretérita.
Se em vez de um Euro 2004, tivesse abraçado o projecto de um Euro 2005, o pobre do Martunis, para além de ter que suportar para o resto da vida a recordação daquela fatídica manhã pos-natalícia de domingo, tinha que aguentar a idiotice e o orgulho abjecto de uma naçãozita do outro lado do mundo, emproada na túrria convicção de que há uma mística e uma certa majestosidade na camisola que o menino sobrevivente usava, portuguesa concerteza, com a graça da virgem maria...
Se o Euro se realizasse em Junho próximo ou se por qualquer eventualidade a tragédia tivesse precedido o torneio, o pequeno indonésio arriscava-se a substituir o boneco Kinas como mascote do Europeu, tamanha é a estranha apologia que se faz da sua sobrevivência nos meios de comunicação social, tão generosa é a compaixão e a gratidão dos portugueses para com o pequeno Martunis por ele se ter lembrado de sobreviver com uma camisola nao oficial da Selecção Portuguesa de Futebol, as oito letras bem evidentes - PORTUGAL- no peito franzino do miúdo, como se de um outdoor se tratasse.
Porque é disso que se trata, não é? Não é a sobrevivência de Martunis que excede a factualidade da notícia, mas sim a existência de uma camisola da Selecção (ou dela representativa), envergada por um menino que deambulou durante semanas por entre a desordem que a onda siderou.
Convenha-se mesmo que à sobrevivência de Martunis falta em rigor e densidade uma carga dramática fundamental para que a "palavra" sobrevivência possa ser plenipotencialmente entendida (e como tal, tão plenipotencialmente legendária como os meios de comunicação social a conceberam).
Martunis é um sobrevivente. Alguém que escapa a um flagelo que deixa para trás tantas vítimas quanto as estrelas do céu, não pode ser outra coisa senão um sobrevivente.
Mas há na sobrevivência de Martunis o traço de uma anânke apesar de tudo feliz; apesar de tudo, Martunis é um sobrevivente não condicional, sem um lugar para o pathós definido. A criança sobreviveu, pois então, mas não sobreviveu no lugar comum dos sobreviventes mediáticos, dias a fio debaixo de destroços, soterrados por toneladas de detritos.
A ilação adiantada - a da sobrevivência feliz - não rouba o mérito jubilante e a felicidade circunstancial a uma ocorrência que não deixa de ser, no umbigo de tanta destruição, uma ocorrência admirável. Mas também não faz da história de Martunis uma história tão extraordinária como os jornalistas portugueses fazem supor que ela seja. O Portugal Diário, por exemplo, narra a história como se ela fosse uma epopeia, tanto o destaque recai sobre Martunis quanto sobre o farrapo que veste.
Para o pequeno indonésio, a julgar pelas promessas da FPF, o ter vestido em 26 de Dezembro a camisola foi, no meio da sindicância atroz do destino, um golpe de sorte. Pena é que a lusitana compaixão não seja nem genuína, nem desinteressada e que surja como o prolongamento de um estimulo de índole pavloviana, suportado por um nacionalismo patusco e completamente inútil. Pena que tenha sido necessária uma camisola para que os portugueses percebessem que para miudos como Martunis, o refluxo da onda que varreu o Sudeste Asiático, sem futebol que lhe valha, durará uma vida inteira.

quinta-feira, janeiro 13, 2005

Boa Noite, Vitinho...

Olhando bem para trás, bem longe sobre os ombros, que ano fabuloso o de oitenta e sete. Assim visto, aluadamente, até é rídiculo desbravar o alcance de um ano morto e enterrado já lá vão quase vinte anos.
Se bem que recordar não custe, epifanias destas são por completo desnecessárias ; deixam-nos moles e aturdidos com lembranças fuscas, por vezes tão inexoráveis quanto as nuvens que passam e hoje houve festança a manhã inteira, com rapsódias de sinopses vagas a ressoar na lembrança, com a consciência a destilar enredos vividos e a tentar subtrair aos pontinhos da memória um recorte preciso daqueles dias.
Salvaguardado o método dos que todos os dias assentam no caderninho das contas da vida os arabescos quotidianos para rememoriação futura, todos andamos um bocado ao deus dará, vaga para a esquerda, vaga para a direita, sempre que a paisagem dos dias a longo termo convida à reflexão.
Lucidez é coisa que não existe no foro da memória. Se percebesse alguma coisa de estatísticas e de percentagens diria que daquilo que recordo, apenas uma fracção ligeira, aí de uns dez por cento, é verdadeiramente meu, vivido e permeável.
O melhor é começar por um príncipio, ponto assente que o destino é mesmo 1987. Hoje de manhã andei às voltas com uma compilação de charts da década de 80, da última metade irrisória das roupas absurdas e dos cabelos funestos, anos frouxos e agridoces.
O problema é mesmo um irmão que tenho, tão nostálgico que até mete pena; para o rapaz não há mesmo melhores anos que aqueles em que vagabundeou de festa em festa de borbulhinha (borbulhinha uma porra, borbulhona!) no meio da testa, circulando - ventas ao vento - numa XF-17 com um assento dentro do espírito da época (cor-de-laranja), carregada de autocolantes, com tigres saltando sobre fogo e golfinhos nadando sobre fogo e borboletas espadanando sobre fogo.
Não bastasse o kitsch e a ciganice, ao rapaz agradavam (e agradam) como nenhumas aquelas músicas melófonas, de arritmias vibrantes, em que a pandeireta e o reco-reco se juntavam ao sintetizador na ansia da recriação invulgar do som do ovo a frigir sobre a sertã ou da faca a perpassar o gorgumilo do porco.
A uma das hemorragias musicais se deve o presente post. Mais precisa e afincadamente à música "Power of Love", coisa melosa que não vale a unha do dedo grande do pé, mas que se cola ao inconsciente com uma eficácia invulgar; está mais que visto que andei vergonhosamente o resto do dia a trautear a porcaria da música, com ganas de pregar dois sopapos na cachola da senhora cantante.
A senhora cantante - Jennifer Rush - parece que gravou o disco inteiro com alguém a apalpar-lhe o cú; a sua voz é um assíndeto: ora berra a senhora de forma a perigar os cristais, ora murmura bichanices imperceptíveis. O meu irmão gosta, no entanto. Mas a senhora Rush não era a única figura rocambolesca dos oitenta.
Melhor, em oitenta era tudo rocambolesco. Basta que se diga que esta e outras músicas, gravou as o meu irmão, na altura, em meia dúzia de cassetes de fita preta a partir da emissão de uma rádio pirata animada por um senhor vagamente fanhoso que trocava os "emes" pelos "bes" e que falava com voz de gigolo, calma e lestamente: "Esta é a sua Rádio "Bebória", senhor ouvinte.."
Uma dessas cassetes tocou o ano inteiro, tal era a variedade musical que encerrava. Para além da senhora Rush, a cassete resguardava verdadeiras pérolas musicais, das quais recordo esclarecidamente duas: "Voyage, Voyage", dos Desireless, e uma outra, a favor da UNICEF, cujo videoclipe principiava com um helicópetro sacudindo as areias do deserto.
Desta, confesso, eu gostava. Falava de crianças, como eu, só que mais pobres, aflitas, à espera de compaixão.
Ironicamente, falava da sorte que eu tinha, a música. Sorte em ter irmãos com XF-17 prontos a sacudir o asfalto, embebidos em Old Spice, penteados à Ziggy Stardust (ou à Madonna, dependendo dos dias), rebeldes sem propósito nos anos mais marialvas do século.
É verdade, caramba, oitenta e sete! Que ano fabuloso... A meio do Verão, com o sol a pique sobre as casas, o irmão das cassetes meteu-me nas mãos o comando (sem fios) cor inox crom de um ferrari testarossa vermelho e fogoso como tudo, uma das alíneas da posse que inflamam o pecado da lúxuria e exageram vaidades e orgulhos na mesma medida em que semeiam invejas.
Quando se é garoto, ter um ferrari telecomandado - dois palmos de requinte e de bom luxo, mesmo que sejam plásticos e irreais - é como ter uma costela de omnipotência que faz com que se sinta que se é maior e melhor que todas as coisas.
Do Verão de oitenta e sete, lembro-me de pequenas outras coisas vagas, tão melindradas pelo tempo que por vezes resigno-me a pensar que não as vivi, que apenas as imaginei como quis, como um tapete que se tece ou uma trama mental que se enraíza.
Certas são as nuvens cor de flamingo minutos antes do sol se pôr, incendiando as serras e os céus, as mãos e os gestos. Depois, o sol adormecia e as ruas sideravam-se de sombras. Na televisão, a despedida
- Boa noite, Vitinho. Até amanhã...
Não me lembro do peso que tinham as horas naqueles dias, nem que calibre despedaçava o tempo em tardes tão imensas que se podia ouvir mil vezes, na cassete de fita preta de um irmão marialva, a senhora Rush lembrar o quão estranha e poderosa é essa coisa que chamam amor.

terça-feira, janeiro 11, 2005

O cozinheiro ideal

O meu primeiro bolo saiu do forno com cara de meia lua ensombrada e cheiro a sapato queimado. Com nove anos não se pode pedir muito mais e foi às custas desse primeira experiência frente ao forno do fogão que aconteceu (sem que eu soubesse o que a praxe era ou se era politicamente incorrecta ou se um atropelo da dignidade pessoal) a minha primeira praxe.
Aos nove anos não se sabe muito do mundo: na escola dizem-nos que ele é redondo e logo a seguir emendam. Afinal não é redondo, é esférico e achatado nos extremos, a culpa é dos ursos polares, animais balofos e endiabrados que patinham tudo e espezinham quilómetros inteiros, daí o achatamento dos pólos e a pronta fracção dos icebergues.
Aos nove anos, não se sabe nada do mundo. E desconhece-se sobre tudo o que seja o valor do sentimento. Aos nove anos, o meu maior tesouro era uma BMX esmalfina, azul como o céu mais azul das tardes de Junho, a companheira inseparável, a amiga nos tombos e nas desgraças. Aos nove anos, a minha esmalfina era o meu tesouro e o velho receituário da minha avó era a esmalfina da minha tia, eu é que não o sabia.
Aos nove anos, pode-se ser muito egoísta. Na minha esmalfina, só o vento podia tocar. Por ela, batia e berrava e amuava e fugia só para que fosse minha toda a sua possessão. Por se ser muito egoísta aos nove anos, compreende-se também o encanto do egoísmo, o estimar exacerbado ao ciúme e à dor.
Se a minha tia me tivesse dito que o caderno de receitas da minha avó, ruço do tempo e escrito com letrinhas pequeninas e tiradas a compasso, era a sua esmalfina, seja eu cego e cão se lhe tinha tocado: nada há de mais sagrado que a posse exacerbada e o valor sentimental.
Aos nove anos sabe-se muito pouco do mundo e somos macacos uns dos outros: contamos a anedota que nos foi contada, comentamos com parcimónia os mesmos desenhos animados, imitamos aquilo que a televisão nos mostra.
Desconheço já porque motivo - se salivei como o cão de Pavlov ao ver um programa de culinária na televisão ou se foi o diabo que me embalou para tal - peguei ao fim da tarde no caderno de receitas da minha avô para criar a partir do nada o meu primeiro bolo, bolo podre afogado em mel e azeite e erva doce (assim rezavam ao menos as crónicas culinárias do velho caderno amarelo).
Um primeiro bolo é como um primeiro filho. Mesmo com cara de meia lua ensombrada e odor a sapato queimado é a coisa mais perfeita do mundo, uma doce vitória, um feito, um marco, ainda que para lá chegar se tenha trapaceado um pouco no açúcar, se tenha enovelado um pouco o fermento e a farinha, encorpado demais as muralhas castelares das gemas, cultivado a frágil planície do caderno da falecida com máculas de bolo cru espessas como moedas ou pinceladas douradas de Pollock, tão ouradas que o fino e arcaico azul da esferográfica se diluiu para nunca mais, recortado por ilhas de gordura num mar finito de palavras brandas e outras coisas doces.
O pior foram as três e meia da tarde, hora aziaga da morte de Cristo e por muito pouco, hora da minha própria paixão forçada, de açoites e chicotadas, de orelhas perseguidas e encalacradas, da colher de pau rasando as unhas e os nós dos dedos, a hora funesta em que o achamento da relíquia, esplanada sobre o tampo do balcão envolta por grumos e salpicos de massa cor de caramelo, se fez pelos olhos ferventes – indignação e mágoa batidas num castelo denso – da tia cozinheira, predadora de todas as delícias dos musseques do litoral e dos tesouros ultramontanos guardados por séculos de servidão monacal.
No bolo, acometendo maior praxis à tragédia, nem uns gatos vadios e esgalgados (que de quando em quando mendigavam fora de portas a supérflua caridade dos restos) lhe pegaram.
Serviu o culinário drama para cimentar um estranho afecto pela imaculada integridade de tudo o que sejam pantagruéis e revistas de doçaria, tudo o que sejam destacáveis de recortar onde uma musse faça os sentidos requebrar. Receitas de ontem ou de hoje, o que importa menos é que encarnem a perfeição; está é a manta pintada se alguma gota de molho decide marinar no meio das letras de um companheiro das cozinheiras ou se um nadinha de merengue se aninha no vão da contracapa dos segredos da cozinha …
Por essas e por outras, por um primeiro bolo que quase me rendeu uma crucificação efémera, é que me considero hoje o cozinheiro ideal. Bom garfo e orgulhoso, pela rede deambulo demandando novas e velhas rotas para saberes e sabores de sempre. Enquanto a impressora cospe um a um os ingredientes, há um entusiasmo em ponto de rebuçado que aquece, aquece e liquidifica.
Nas entradas dolomíticas da imaginação, à agilidade das iguarias, acresce um prazer sórdido e pecaminoso. Os ovos rebolam com o açúcar, a canela afoga a brandura num trago pequenino de cointreau, a batedeira derrapa contra o fundo do recipiente e propulsiona uma chuva de salpicaduras que se espalham pela mesa, pela receita impressa num times new roman carregado, pelo chão, pela alma.
E é um bocado como se crescesse ali uma arte efémera e sucedânea, a folha carregada de pepitas imberbes, o forno espalhando pela casa o aroma paliativo da doçura, dando as últimas pinceladas num Picasso original, no mais versátil dos Van Goghs.
Sem ressentimentos – descartável que é o receituário – o cozinheiro ideal cria para o estômago a mais melíflua arte. Eis a doce moralidade da tarde em que um bolo degenerado, que não tendo sido comido, quase matava de raiva e congestão uma tia cozinheira e três gatos malhados.

quarta-feira, janeiro 05, 2005

Noite de Reis

Acabei de descolar de há muitos, muitos anos atrás, de uma memória guardada, de um sopro de ontem. Hoje, o tempo parou para uma noite de anto: a modorra da fogueira arvorando devagarinho pelos zíngaros de pinho e de carvalho adoçou a conversa e comungamos de nós como se festejassemos ou temessemos os deuses antigos e a sua morte ou que a vinda de um deus novo arvorasse de calma a calma da noite.
Como um suspiro ou um afago, a lareira cuspiu o mais das horas um abraço languido e incensado, a resina das àrvores imberbes ferveu sobre as brasas e o sopro morno das chamas, bailando, embalou-nos a todos na calda rememoriação do visto e do vivido, dos que partiram e dos ausentes. E falamos como nas noites antológicas, de Deus e do Diabo, de assombrações e de encarniçamentos, de fulanos que viram passar féretros voando em curvas malfadadas de caminhos do demo, de outros que coleccionam sustos e medos antigos e esqueçemos todos a luz que nos alumia; a janela para o mundo fechou-se hoje a noite inteira e ninguém teve sequer a tentação de ressuscitar o comando da dormência.
O A., por exemplo. O A. é um óbelix, um marinheiro denso sem milhas de mar navegado, um homem imenso, tanto em corpo como em bem-querer. E é ao mesmo tempo uma flor de sal, um passarinho crédulo, um menino pasmo a quem se contam histórias impossiveis como se fossem orações, que é assim que elas são aceites por ele, como um promontório de santidade onde o respeito deve ser manifesto e o receio sincero. O A. tem mil destas histórias de almas penadas e mágoas varridas, de mortos sem descanso eterno. Conta-as junto ao brasume com um trejeito que as tornam deliciosas, apeteciveis como castanhas. Conta-as com um fermento de fantasia que fez desta terceira consoada - mesmo sem a azáfama das filhoses e dos doces, sem a penúria pessoal das prendas a oferecer e a descontar - uma consoada descomprometida, do verdadeiro e velho Natal: o Natal da família.
Sob a mesa o bacalhau acrescentado, uma garrafa de vinho (um palmela creio). No lume, lavrando sem pressa, as curtas labaredas queimam pela última noite o nataleiro, um madeiro de carvalha cerquinha (espécie de carvalho que adoça as folhas com um veludo raro) que arde todas as noites desde a tarde da primeira consoada até aos Reis. O resto do madeiro, no saber dos antigos, é remédio santo no amainar das trovoadas e das tempestades, do frio que aperta e da água que encharca.
O resto da noite é já de anto. Se assim fossem todas as outras, bem que isto de se ser Natal podia acontecer mesmo todos os dias...

terça-feira, janeiro 04, 2005

Portugal Negativo

Dormente. Tenho dormente num canto da consciência, algures entre a incógnita e a dúvida, um texto, não sei se grande, se pequeno, se obrigatório, se necessário, sei que o tenho escrito com impressões malfadadas que trago como um carrego e como um incómodo e quero, tenho, mesmo de o deitar à rua e ao papel, de me afastar das razões do coração e dos enredos pouco lúcidos da vontade com que se acolhem por vezes os estigmas e os conceitos que povoam a contemporaneidade. Confesso que, das duas uma: ou gostava de roubar aos deuses a sapiência ou a inocência a uma criança.
Não me compete julgar de que forma são as duas rodeios distintos de uma manifestação, nem porque meios são elas uma única e mesma evidência. Nelas agrada, sobretudo, a distância face à pequenez analítica do Homem, à infinitesimal preponderância para uma cegueira invulgar, a de considerar civilizado um animal que pensa, constrói, idealiza mas que em sete milénios de dita civilização não conseguiu sequer esboçar uma forma digna de sociedade, justa, senão mesmo perfeita.
Falava de um escrito e de cegueira, de um ensaio sobre a tristeza e os demais negativismos que atentam a alma e a calma dos portugueseses e confesso que divago com pouca segurança sobre o que hoje é Portugal e sobre quem são os portugueses, certezas não tenho muitas e mágoas colecciono-as todos os dias, mais vezes são as vezes que me "avergonho", que aquelas que me espanto e volto a confessar, não sei de que forma pode estar um país deprimido, mas em mim mais são os dias de desilusão do que as jornadas de franco estultício ou de suave contentamento.
Se é válida ou não a tendência para a tristeza, não sei e não me compete acusar nada, nem ninguém, nem a história, nem a biografia do mundo e dos grandes homens que, algures, num momento no tempo, tiveram ou têm nas mãos o destino de todos os outros: é uma evidência da fragilidade da sociedade enquanto universo útil de que poucas vezes nos recordamos, essa de precisarmos dos outros para viver mas também dependermos da sindicância da sua vontade para continuarmos vivos, sempre tive medo de uma morte estúpida, de sucumbir ao excesso de alcóol de um fanfarrão bebedor e entusiasmado, de receber do céu um projéctil com a morte nas vértebras, de morrer aos olhos e à indiferença de todos enquanto o meu peito espera uma saída para o vício e para o sufoco.
Mas não há-de a morte doer tanto. Não tanto ao menos quanto a estranha evidência de que não sabemos quem somos, que força nos move, porque desígnio é legítimo que nos guiemos, não quero resumir a factura de uma alma colectiva à vitória num campeonato de futebol, mesmo que este se tenha por europeu e mediático, nem sobreviver num país que querem à força converter num arraial de sol, só sol e nada mais.Recuso não entristecer quando os velhos da minha vida se somem numa viuvez muda e atraiçoada, mais pelo abandono que pela ferrugem nos ossos. Quando as redes dos batéis que ao mar conquistaram respeito e mundo apodrecem nas cercanias dos pontões. Quando as encruzilhadas dantes percorridas se afundam em silvados e matagais para depois, com quarenta graus de sol posto, se consumirem em cinzas e lodaçais. Recuso a tristeza sem compaixão e o Homem sem seriedade. Recuso os que criticam o Portugal que temos, lhe apontam os vícios, os estragos e os defeitos e fazem da sua crítica um exemplo de virtudes desprovido de concretizações. Recuso não entristecer ao ver Portugal desaparecer. E quero ainda mudar o mundo. Quem muda o mundo comigo?

Grande Victoria...

Lembra-se do videoclip daquela música do Paul Macartney com os sapinhos a cantar e a pular de nenúfar em nenúfar? Não lhe vinha ao espírito uma vontade de flutuar também sobre as águas, um pé numa folha, outro noutra? No Jardim Botânico de Coimbra, o mais velho de quantos existem no país, quase se torna possível saciar essa vontade, por obra e graça de uma impressionante Victoria Cruziana.
A Victoria Cruziana – assim baptizada em homenagem à rainha inglesa homónima – é nada mais, nada menos que o maior nenúfar do mundo. As suas folhas podem atingir os dois metros de diâmetro e – espante-se! - suportar o peso de uma criança de cerca de vinte quilos.
A “jóia da Coroa” do Botânico (que viu concebida uma estufa expressamente para a sua exibição) tem uma resistência tal que ainda hoje se diz que no seu ambiente natural – a Amazónia equatorial – as mães índias se serviam dela como berço: colocavam os seus bebés nas folhas e esperavam que as águas fizessem o resto.

domingo, janeiro 02, 2005

A Livraria Ideal (tomo 1)

Originalmente publicado no jornal “A Estação” (Rio de Janeiro), como folhetim, entre Outubro de 1881 e Março de 1882, “O Alienista” faz parte da colectânea Papéis Avulsos, uma obra contemporânea das Memórias Póstumas de Brás Cubas, editada pela primeira vez em 1882.As questões suscitadas pelo conto indexam o leitor aos limites de um século que se assumiu cientificista, consubstanciando crítica e intervenção na orla das modificações que se coadunaram como substanciais para a vida da jovem nação brasileira.
Logo em 1889, o regime monárquico cai face à turbulência dos ideais republicanos e positivistas em que todos parecem imersos. Nem todos, contudo: Machado não deixa de olhar com cepticismo para as ideias que sacodem, como um terramoto, a sociedade brasileira.Um século seria mais que suficiente para corroer uma obra. Mas não é o caso. “O Alienista”, não é abusivo referir-se, descobre um tratamento inédito e quase profético da questão da loucura, antecipando o debate sobre as fronteiras entre a normalidade e a insanidade.
Antes de um estudo psicanalítico assertivo, antes mesmo da desmistificação das doenças do foro mental, Machado de Assis veicula com a “O Alienista” ideias que encontram eco, satisfação e justificação nos conceitos de incerteza, na crítica aos conceitos de loucura e à nebulosidade que a envolve introduzindo assim uma espécie de hipótese pré-teórica para o caos).
As ligações entre poder, ciência e loucura só virão a ser explicitamente debatidas na década de 60 do século XX, depois das considerações práticas e teóricas de personagens como Ramon y Cajal, Miguel Bombarda, Egas Moniz e Michel Foucault.Privilegiando a análise da loucura como momento de eclosão do pensamento de uma época, Machado procura revelar a afinidade entre a loucura e o poder, pela revelação de uma das suas máscaras mais angulares: a política. Interessa a Machado o jogo de forças que se defrontam em torno da normatização (toda a tragédia de Bacamarte oscila entre os diversos critérios de normalidade que procura colocar em prática), posta em andamento pela ciência, que se imaginava tão nobre e imparcial. Assim, a fala da medicina psiquiátrica é tratada como exercício de poder, o que autoriza Bacamarte a agir “virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heróicos”.
O Alienista não se debate apenas com a irredutibilidade da loucura (a busca dos critérios, a exigência de rigor, as classificações, o bloqueio das emoções, o messianismo civilizatório da ciência). A sua vigilância científica desencadeia um poder que altera a vida da comunidade de Itaguaí. Neste sentido, a obra de Machado continua mais contemporânea que nunca: remanesce uma investigação de natureza política em torno do poder da ciência.

Sugestão da Semana:
Assis, Machado de, O Alienista, Hiena Editora, Lisboa, 1997;

sábado, janeiro 01, 2005

O ano que hoje entra...

Dois-zero-zero-cinco. Número redondo, portanto. Umas lunetas enfuniladas entre dois traços inflexos, um é quase antónimo do outro no trajeito e na curvatura. Ano encurvado, se calhar. Do mal o menos: somadas as curvas e as albardas sinuosas, o dois ao cinco e o zero ao zero, resulta na balança do dois-zero-zero-cinco, ano e código, a temperança do sete, algarismo pitagóricamente mágico e superior, cordato no mínimo, reconhecidamente equilibrado.
Adepto do sete sou eu, pois então, ou não tivesse eu na pauta da identidade um sete que se repete, sete duplo, uma boa mão ao jogo, uma boa mão na mão do croupier.
Adepto sou eu do sete. Sete eram as maravilhas da antiguidade e as órbitas dos planetas no firmamento inicial. Sete são as cores no espectro da claridade, em todo o esplendor do reino da luz.
Mau é este sete ser fruto de sugestão como é o menino fruto do ventre da Virgem Maria. A mim, convém-me que o ano que hoje entrou tenha um sete algures corporizado, em corpo ou em espirito ou em sugestão. Convém que a sorte mude e como há quem reze que o sete é numero de fortuna...
A casa sete no boletim do totoloto, a cruz na sétima estrela do euromilhões, da fortuna, até hoje só alimentaram angustiantes segundos de ilusão, mas isto de se ter uma mitologia só nossa, uma superstição com força de fé é tão importante como mitigar os sonhos ou adoptar fantasias. Se o meu sete tivesse um rosto e uma capa de organdi flamejada a ouro, acendia-lhe uma vela pela crença e outra pela devoção, uma pela santidade e outra pelo panteísmo.
Mau é, pois, ser o sete um sete sugerido, aritmético. E mau é o ano nascer a um sábado, no saber dos antigos dia governado por um Saturno de temperança indecisa e de justiça maleável. Assim o retratava um avô materno autodidacta das estrelas, timoneiro das tabelas astrais e das páginas dos almanaques. Erudito e crente, no exercício da ruindade um único nome suplantava o de Saturno, de acordo com o seu saber antigo de avô materno. Mercúrio, na mecânica dos planetas, era o mais vil, o mais torpe, o comedor dos próprios filhos. Rimava e arrimava com desgraças e com misérias. Dele, nem beneplácito nem bonança, só o rigor nas catástrofes e nos dramas.
Governado por Saturno, dois-zero-zero-cinco não será brusco nem brando, mas também não se sabe ao certo o que possa ser. Parece-me porém que dois-zero-zero-cinco trás mais do mesmo. É disso que se convence quem já teve nas mãos o verdadeiro almanaque, o Borda d'Água e nenhum mais. Previsões à parte, joy to the world. Um dois-zero-zero-cinco trezentos e sessenta e cinco vezes positivo...