Prestes João
sábado, outubro 27, 2007
Quinze mil pessoas encheram as bancadas do Estádio da Taipa para a cerimónia inaugural da edição número dois dos Jogos Asiáticos em Recinto Coberto. "Mei Mei", a mascote da competição e Sun Wukong, o rei macaco da tradição etnográfica do Sul da China serviram com fio condutor a um espectáculo milionário que deu a conhecer algumas das modalidades que compõem o cartaz dos Jogos.
Há dois anos, na Tailândia, a cerimónia inaugural da primeira edição do certame desportivo teve ares e cores de flop: coreografias mal ensaiadas, um pavilhão mal iluminado e a música de tal forma dessincronizada que milagre foi o satélite não se ter desconhavado com uma transmissão de tão má qualidade.
Outras águas correram no palco de seis mil metros quadrados instalado no Estádio de Macau; Silvério e companhia voltaram a mostrar que dinheiro não é problema, concebendo um espéctáculo inaugural bem maior que a própria competição.
São quarenta e cinco, os países e territórios presentes na RAEM para uma competição desde sempre anunciada como o maior espectáculo desportivo de que Macau foi, alguma vez, palco. A Ásia inteira não bastará, no entanto, face à menoridade desportiva de algumas das modalidades que enfeitam o ramalhete do evento.
De certa forma, estes jogos fazem lembrar a terceira Olímpiada da era moderna. Disputados em Saint Louis, nos Estados Unidos em 1904, os jogos da terceira Olímpiada distribuiram medalhas em competições como o jogo da corda, "rope climbing" ou (pasme-se!) num torneio que apurou quem seria capaz de cuspir um caroço de cereja a maior distância.
Em Macau, as coisas evoluíram, as modalidades indoor que integram o cartaz dos Jogos não lembram ao diabo: há o sepaktakraw de salão, o ciclismo artístico, as danças de salão, natação com barbatanas e um jogo de ciclismo com bola, futeciclo ou ciclobol. Em suma, até um torneio de matraquilhos, de ténis de mesa ou de sueca fariam melhor figura.
Não é de se esperar, por isso, que o povinho de Macau, amorfo quase em relação a tudo que não seja casinos e Grande Prémio, acorra com grande entusiasmo para ver tão estranhas competições. A ver vamos. Até 3 de Novembro.
sexta-feira, setembro 28, 2007
Os que falam ...
São Tomé e Príncipe é um dos países mais inóspitos do mundo. Duas ilhas e uns quantos ilhéus luxuriantes, moldados num caldo morno de isolamento e de esquecimento. Quem por lá passou fala de um tempo outro, de uma tranquilidade inaudita e de uma espécie de degradação maravilhosa. Aos são tomenses que se decidem pela permanência sobre o fogo do Equador pouco mais sobra que a imaginação e que um manto de um verde que esmaga.
Há uns anos parece que por lá encontraram petróleo. A avidez pelo ouro negro fez com que pela primeira vez em muitos anos o mundo olhasse para o arquipélago e desenterrasse do mapa o semblante das duas ilhas.
Os dois territórios terão sido, porventura, os últimos quinhões do feudalismo medieval português. Fora do mundo e fora de tempo, no São Tomé das roças e da malária, a miséria substituiu a escravatura e durante anos o que restou foi um povo a olhar o mar por querer partir.
Frágil, pobre, pequeno na sua pequenez, o país não soçobrou. Mitigou o isolamento e foi fazendo o que pode, com uma ou outra ajuda. Ontem, Fradique de Menezes cuspiu na realpolitik e, mostrou na 62a Assembleia Geral da ONU, que os amigos não se apunhalam.
terça-feira, setembro 18, 2007
Duas no código, uma na ferradura
A 1 de Outubro próximo entra em vigor o novo regime do Código da Estrada.
A formalidade passa-me ao lado. Não é que a ignore ou que as lides de um dos códigos legislativos com maior incidência nos trâmites do quotidiano me sejam desinteressantes. A razão é outra, simples e óbvia: não conduzo e o governo decidiu legislar para os que conduzem, aceleram e estacionam.
Eu, que não conduzo, não acelero e não estaciono, fico de novo votado a uma penumbra que, convenhamos, me incomoda.
A partir de 1 de Outubro há um novo Código da Estrada em vigor e, tal qual o antigo, os que não conduzem e - como eu - se limitam a atravessar a estrada, ficam de novo sem saber quais são afinal os seus direitos e as suas obrigações.
Quando estudava na universidade foi-me dito que havia signos, símbolos e objectos que tinham, por si mesmos, valor linguístico e uma performance própria: o fumo, por exemplo, deveria ser lido como um indício da existência de fogo. Uma passadeira no coração de uma estrada como uma evidência de uma espécie de refúgio.
Não é necessário ter-se noções de semiótica para se respeitar uma passadeira. Todos aprendemos desde pequeninos que a "zebra" é o local que nos leva ao outro lado da rua em segurança.
Segurança que em Macau não existe porque existir ou não existir passadeira pouca diferença faz. É um ofício perigoso, quase um mister à Indiana Jones, este de se atravessar a rua até ao outro lado.
O ano passado, ali à frente do Pacapio, uma velhinha (daquelas quase sumidas, enrugadas como os trapos) foi abalroada à minha frente. Seguia em pleno coração da passadeira. O choque não foi violento, mas a senhora ficou estatelada ao comprido com uma dúzia de mirones a inteirar-se da tragédia.
Do carro, com matrícula dupla, saiu um fulano que me pareceu menos chocado que impaciente. Gesticulava e cuspitava palavras que me pareceram assanhadas, apontando a unhaca à velhaca ali estendida. Tem alguma coisa que atravessar passadeiras, diabo da velha!
Contive-me para não lhe ir ao focinho: dois passos mais e tinha sido eu.
À frente do Pacapio não há semáforos: a zebra zurra por si só e é quem mais ordena. Perdão! Estamos em Macau: a zebra é quem mais devia ordenar. Nunca o fez e pelos vistos não o virá a fazer tão cedo.
A 1 de Outubro próximo, o novo código da estrada entra em vigor. Vou ver ainda se até lá arranjo um exemplar, com as coimas, as mudanças e as alterações todinhas.
Pode ser que venha a dar jeito da próxima vez que eu me borrar todo quando a velhinha à minha frente for apanhada por um carro mesmo mesmo no coração da passadeira.
sexta-feira, setembro 07, 2007
quinta-feira, julho 05, 2007
Mitologia Grega
Carson Yeung Ka Shing é um dos fulanos mais ricos de Hong Kong. É dono da quarta casa mais cara de toda a Asia e é, desde a semana passada, também o accionista maioritário do Birmingham.
O Birmingham está para o futebol inglês como a Académica está para o futebol português: são clubes do nem ata nem desata, da margem inferior da tabela.
Yeung Ka Shing não é, ainda assim, muito afoito a negócios perdedores e perdulários. O fulano terá conseguido grande parte da fortuna pessoal através do investimento feito no sector do jogo, em Macau, nomeadamente no casino Greek Mythology.
O Greek Mythology é um dos casinos mais lucrativos de Macau e é também uma das instâncias da antiga Cidade do Nome de Deus que mais me recordam Portugal.
Não sei se não será freudiano: as figuras de estuque que enfeitam a entrada e as entranhas do casino - divindades levemente fulminadas pelo quadratura kitsch que domina a "coisa"- têm um não sei que de folia carnavalesca, lembram um Correia de Campos feito cabeçudo, a tergiversar os lados todos à rua ao som dos bombos dos zés pereira.
São assim umas estátuas gigantones, muito esdrúxulas e imperfeitas, aquelas que enfeitam o casino do senhor Yeung Ka Shung. Um Zeus de esferovite à entrada com uns cavalos que não se sabe muito bem se estão a erguer-se das àguas, se estão a morrer afogados.
A tudo isto assistem umas ninfas encovadas, quase em posição fecal, de quem se prepara para arrear o calhau à velocidade da luz.
Lá por dentro há frescos de filósofos à mistura com centuriões romanos, capitéis dóricos e jónicos feitos de gesso e contraplacado, tudo muito leviano e ligeiro, longe de um certo requinte que existe já por outros casinos de Macau. E no entanto, este Greek Mythology é um dos casinos mais visitados da RAEM, muito à mercê de acordos delineados com agentes turísticos que conduzem ao estabelecimento o mesmo tipo de chineses continentais que se deleitam a enterrar os pés na esterca areia da praia de Hac Sa. Nada mau para quem, como Carson Sheung Ka Shing, ja foi o cabeleireiro-mor (o império do magnata começou com um salão de tratamento capilar em Kowloon) de Hong Kong.
terça-feira, julho 03, 2007
Foochow ou os Mil Nomes da China
Teria preferido Xiamen, ainda que as ressonâncias quase fantásticas da antiga Amoy praticamente já não persistam.
Calhou Fuzhou, cidade em que formigam seis milhões de pessoas, mais de metade da população portuguesa condensada no cinzentismo ascético e habitual das urbes chinesas. A Foochow do início do século XX, numa altura em que a China fervilhava mil descontentamentos, muitos dos quais singravam à custa da presença e do apetite rapáceo das nações ocidentais, teria sido o destino ideal.
A China das concessões estrangeiras, de Shameen, de Shangai, de Amoy, de Qingdao, de Porth Arthur, das shangai flowers (tal e qual Josephine Bakers do Oriente) e do ópio. A China dos escritos de Pearl S. Buck e de Sommerset Maugham. Uma vez mais, a China de Foochow, hoje feita Fuzhou. Uma China com mil séculos e com mil nomes. Rostos? Quantos terá no futuro?
Ocean's em Macau
Slots, mesas de jogo, tuxedos e o glamour pastiche dos casinos, uma referência relâmpago a Macau e alguns nomes familiares. O Belllagio, o MGM e o irmão mais velho do Wynn, em quase tudo igual a este que aqui temos (talvez um nada mais liberto), apanhado de relance, muito à pressa, num filme em que abundam negociatas, vendettas e fichas de jogo.
Uma trama pobre, confusa e pouco convincente enfeita o resto do ramalhete sem que se saiba ao certo quem são, afinal, os treze de Daniel Ocean. Treze duros que aparecem agora envelhecidos, menos elásticos e menos convincentes, dimínuidos por um enredo que repte os propósitos da aventura original e só lhes muda os preceitos e o vilão.
Uma trama monocórdica porque sem desvios:não há em todo o filme uma pitada de romance, uma diva que empanturre um pouco a ginastica à engrenagem e faça hesitar um nada ou um ou outro.
Ocean's Eleven, o único quinhão genuíno da trilogia (recriou, recorde-se, um clássico de 1960 em que brilhavam Frank Sinatra, Sammy Davis Jr., Dean Martin, Shirley MacLaine e uma série de outros nomes de alto gabarito) conseguiu ser um filme monumental: bons actores, uma boa trama, uma banda sonora genial.
Ocean's Twelve, se algum mérito teve, foi o de não deixar morrer a pandilha. Recuperou-a num cenário mais do que distinto, contra uma espécie de Arséne Lupin dos tempos modernos. Tirando uma ou outra excepção, nenhuma sequela se consegue alçar para além da notoriedade do primeiro respiro da saga. Ocean's Twelve é um daqueles filmes de digestão fácil, um dos que não enchem nem enjoam.
Com Ocean's Thirteen a coisa muda de figura. Ao perder a noção de que o enredo se desenvolve por caminhos já percorridos, Steven Soderbergh deita a perder o propósito da película.
Numa altura em que Vegas parece perder terreno face a Macau no que aos montantes movimentados diz respeito, parece que Hollywood quis dar um empurrãozinho à cidade do pecado.
Se bem que Las Vegas não seja, bem vistas as coisas, mais que o maior outdoor publicitário do mundo, há no filme uma sucessão de marcas e referências que fazem mais pela cidade norte-americana que aquilo que o mui amador e quase tautológico slogan que trata de promover Macau lá por fora - "Num mundo de diferença, a diferença é Macau"- alguma vez poderá fazer pelo território.
sábado, junho 02, 2007
Maio Maduro Maio II
Estarão, em Hong Kong, as premissas democráticas a perder força e o ímpeto para um solução democrática a desvanecer-se?
No ano em que se assinalam os dez anos do regresso de Hong Kong à soberania chinesa são muitos os que entendem como um sintoma de cedência o facto dos movimentos pró-democráticos já não conseguirem convencer com a mesma força com que outrora convenceram.
O 1º de Maio com a assinatura da RAEHK é disso um exemplo. Enquanto nas ruas de Macau choviam tiros e bombas e murros nas trombas e desfilavam mais manifestantes do que em qualquer outro protesto realizado na antiga Cidade do Nome de Deus ("Não há outra mais Leal"), nas possantes artérias de Hong Kong foram pouco mais do que 6 mil os manifestantes (cordatos) que exigiram sobretudo melhores condições de trabalho para classes profissionais em que se integravam as empregadas domésticas e os funcionários das empresas de segurança.
Um ninharia se tivermos em conta que Hong Kong tem uma população jeitosinha , na ordem dos seis milhões de habitantes e que é vítima, por exemplo, de mecanismos de especulação que inflacionam quer o preço de bens de consumo, quer as condições de vida, fazendo da antiga colónia britânica uma das cidades mais caras do planeta.
Não deixa de ser verdade, no entanto, que os dias negros suscitados pela propagação da pneumonia atípica já há muito parecem adormecidos na memória dos cidadãos de Hong Kong. A economia tem crescido (ainda que de forma mais branda que em Macau), os ensejos da população da RAEHK têm vindo a ser mais ou menos atendidos e a cidade parece regressar aos poucos à ribalta asiática e mundial e a ser o que sempre foi, uma lança do ocidente a raiar na imensidão da Ásia.
Tais motivos - aliados à eviência de que as sociedades onde o confucionismo predomina são sempre sociedades onde predomina também um sentido muito prosélito de ordem e hierarquia - poderão justificar o arrefecimento gradual dos valores pró-democráticos junto da população de Hong Kong.
Explicam também, de certo modo, o entusiasmo dos activistas pró-democráticos da vizinha região administrativa com os incidentes que ocorreram há pouco mais de um mês nas artérias do Porto Interior.
Com o credo democrata menos forte, importa não deixar que o trabalho feito até ao momento não o tenha sido em vão. E que melhor solução do que "internacionalizar a luta"? Maio, maduro Maio não foram apenas os tiros, o gás pimenta, os cães e o sr. Leong que apanhou com o balázio. Consegui também ser o escorraçar de "Long Hair" e do séquito que o acompanhou.
Entre os comentadores do território - com alguma naturalidade, de resto - a questão foi interpretada quase como normativa, ao abrigo de um pressuposto que chega por vezes a rasar o caricato.
De acordo com uma tal interpretação, o governo não deve nem aos cidadãos de Macau, nem à Assembleia Legislativa e, muito menos, aos tais insurgentes de Hong Kong explicação de indole alguma porque o que "Long Hair" Leung Kwok-hung e os que o acompanharam tentaram fazer foi imiscuir-se nos assuntos da governação do território e, como tal, atentar contra a soberania das instituições de Macau. Uma soberania que é parca, tutelada e manietada de longe, por Pequim, ao abrigo dos pressupostos da Lei Básica e da própria natureza das Regiões Administrativas Especiais.
A justificação, veículada por alguns spin doctors através dos meios de comunicação social, pareceu agradar ao governo, que consentiu, calou e não justificou porque razão foram os activistas de Hong Kong escorraçados. Eles, que desafiavam desde o outro lado do Delta, o governo de Edmund Ho, mas que traziam até ao território um alerta importante: há valores que impõem e que se fazem preponderantes.
Valores como a liberdade de expressão, o direito ao protesto e mais ainda, o direito a uma vida digna num território que tanto se gaba de ofuscar Las Vegas e de arrecadar dinheiro de forma irrefreável. A 1 de Maio último, tais valores custaram à policia cinco balas para cair.
Maio Maduro Maio I
O post abaixo foi escrito há mais de um mês, horas antes da manifestação do 1º de Maio ter tomado as ruas do território.
Não tinha como objectivo congeminar futurologia, mas algumas das coisas que lá foram ditas tornaram-se, de um modo ou outro, proféticas. Falavam de um regime que emerge, de um "Estado" que se faz pouco rogado no que toca ao uso da força e de manobras de censura, persusasão e propaganda.
Para quem não se coíbe de apontar o dedo às coisas, o mês de Maio foi um banquete. E os laivos, que não tinham intenção de ser proféticos e que acabaram por expor as fraquezas de uma governação RAEM(ática) colocaram a nu o esqueleto do regime que se alevanta: os tiros na manifestação, a ingerência do Gabinete de Comunicação Social no trabalho dos jornalistas do canal chinês da TDM e o caracter expedito com que as forças de segurança impediram a entrada dos "radicais" do território são lacerações mortais na credibilidade de um governo que quer fazer de Macau uma cidade internacional. Cinco tiros para as nuvens e outros tantos para os pés cagam um bocado a pintura e roubam a face à cidade.