sexta-feira, março 31, 2006

Cidade


Quando partiu recebeu o impacto da primeira orfandade. Faltaram-lhe as pedras gordas e areadas, polidas pelo vento. Os trilhos de poeira e o calraxo seco, lambido por rajadas serenas de um vento solar, tórrido, caudaloso.
Faltou-lhe o céu imperturbável e magno, com a imensidão e a planura dos espelhos. O chorrilho sôfrego da água em corgos e regatos improvisados sempre que o azul do espelho celeste se pintava de ácer e desabava, desabava, desabava.
Faltou-lhe, dias seguidos, o ar quebrantável da manhã, tão rarefeito que se mascarava de fio de coisa nenhuma, escorregando esguio pela traqueia.
Faltava-lhe uma magnitude que não o esmagasse. Que antes o siderasse pelo coração das coisas e reivindicasse para os olhos o sentido da liberdade, a prosa fácil da distância; uma outra amplitude que a do abismo invertido dos prédios e das passagens aéreas que cortavam o horizonte às ruas e enegreciam a luz.
Olhara para a cidade com crueldade, nessa manhã. Julgou para si que a altura abusiva dos prédios tinha a força dos grilhões, a subtileza das margens caneladas dos cartuchos de papelão quando resguardam do mundo a memória e pouco mais que nada.

sexta-feira, março 24, 2006

História Geral das Missangas e Contas Que Tais


A cientificidade da história é um mito. Longe do património lógico da matemática e da minudência analítica da ciência, a mundividência histórica sempre se fez de versões, de relatos que se entrechocam, de pormenores que se revelam quando outros os iludem. A relativa incoerência que rodeia a pretensa cientificidade da história torna a análise histórica numa aventura pragmática, em que os relatos se tecem a partir das relíquias, dos objectos e dos documentos que perduram ainda do alvor dos dias viajados, mas também a partir dos espaços de incógnita que o tempo rasurou.
Nascem pois as conjecturas, associam-se pistas, movimentos e decisões, preenchem-se os espaços em branco com peças talhadas à medida, encastando soluções eventuais na auréola do palpável e do conhecido.
O pragmatismo da história evidência-se em outro aspecto, não menos deslumbrante. A bem dizer tudo o que o tempo volveu é história. Tão importante é, nesses termos, o contributo do aldeão anónimo que arroteou e plantou o pinhal de Leiria, como do monarca Dinis que ordenou as lides a promover e o trabalho a ter em conta.
Em termos factuais ambos professaram um contributo decisivo para alterar o alcance da paisagem natural, humana e social da região na Idade Medieval. A forma como um e outro são recordados depende sobretudo da abordagem que o historiador desenvolve em torno de um acontecimento concreto: a plantação do pinhal de Leiria.
Jose Mattoso, quiçá o maior historiador português, inovou a historiografia portuguesa ao estudar de forma sistemática as relações sociais, os conceitos do quotidiano de uma ou de outra época, as estruturas e os registos de dependência que pontuavam a bem dizer o dia a dia de um determinado conjunto social. A história de Mattoso, a bem dizer, é uma história que não se faz de reis, nem de heróis. Faz-se de gente.
A questão da abordagem e do prisma com que se mergulha no passado mais incumbente se torna, se for tido em conta um outro aspecto:o da especificação do que é estudado. Especificação que não é já sequer uma sectarização da história; que não é o estudo de blocos da história ou das mundividências ao longo do tempo. Não é a história da arte ou da música ou da religião. É mais ainda. É a história dos detalhes do quotidiano, dos objectos, dos gestos e das opções.
O Centro Cultural de Macau teve até há pouco tempo patente uma exposição que ilustra bem uma tal incumbência. A exposição versa sobre a história da indústria dos fósforos no território e apresentava um leque bem conseguido de objectos que abrangiam desde o processo de produção até ao uso banal e quotidiano dos palhetes nas cozinhas e nas esplanadas da cidade, ora para acender o fogão, ora para endomingar o cachimbo de ópio.
Longe de Macau, nas praias apetecidas da ilha de Moçambique, uma prática se tornou corrente de há algum tempo a esta parte. Mulheres e crianças passam os areais a pente fino, com o olhar aguçado das águias, à procura de missangas, cacos e contas de vidro que o mar arrasta desde o fundo dos mares e arrasta para a costa. A área, zona maldita para os navegadores renascentistas, serviu de cemitério a incontáveis naus de carreira oriundas das Índias e de outros extremos orientais, carregadas do travo da canela e do açafrão, das sedas e das porcelanas da China, das lacas nipónicas e de um sem fim de outros resgates e tesouros.
As crianças da ilha de Moçambique pescam missangas e contas na rebentação das vagas, criam com elas, enfeitam-se, vendem-nas. Cinco séculos passaram, o mundo enfrenta processos mais conscientes de globalização, a canela abunda nos escaparates dos supermercados, a porcelana nos lares de classe média e as missangas, ao que parece continuam a cativar, com simplicidade, o gosto de muitos por esse mundo fora. E, no entanto, muito pouco se sabe sobre a génese, o propósito, o custo e o destino dos pequenos adereços. Seriam, no alvor da saga de quinhentos, objectos de luxo ou as jóias dos pobres? Extravagâncias ou adornos apetecidos?
Julgo, por mim, que o pragmatismo da história (e de qualquer historiador loucamente entusiasta) ja se fazia merecido no que a contas e missangas diz respeito. Talvez não seja o único, até. Duvidam? Ora vejam lá ....