sexta-feira, abril 07, 2006

Vozes da China: Mei Yaochen (1002-1060)

Recordo

Recordo as nossas primeiras promessas de amor.
Por trás de uma cortina de flores tocavas a cítara para mim:
queriamos consumir o fogo gota-a-gota
e não ouviamos fluir o relógio de água.
Abrias as persianas
e as andorinhas entravam;
deixavas de tocar,
os pardais cantavam.
Enlaçados pelas mãos não esperavamos
nem títulos nem altas posições,
apenas passar a vida juntos, um e o outro.


A partir da versão espanhola de Harold Alvarado Tenorio

Happy When It Rains


E assim foi que as nuvens se debulharam com estrépito, morria a tarde.

quarta-feira, abril 05, 2006

Chove sempre no Cheng Ming


A margem resplandecia de néons e de torres e o céu arrastava-se entre elas, meneando-se prostrado no veios das ruas. A pele escamoteou-se com a espessura do ar feita palpável. O estertor húmido do ar escalando as vértebras, desenhando, invisível, diagonais ao sangue, revestiu de estranheza a unção primogénita com que a China se apresentou.
Ao segundo dia, a insubmissão dos sentidos foi-se tornando volátil e a cidade perdendo em surpresa: a altura dos prédios tornou-se apenas possível, a magreza das ruas inevitável, o zumbido das motas familiar, a anarquia do trânsito perturbadora.
Pior foi domar o olfacto. Desembarcar no inicio de Junho é arribar em altura de buliço espiritual e de temoroso fervor, ancorado quer no respeito, quer no receio pela memória dos antepassados. Do chão, a cada dois passos, emanavam fios volúveis de fumo, levemente acentuados com uma ou outra fragrancia,moldados em neblinas esparsas, repugnatemente doces, enjoativas.
Em oratórios minúsculos, ao nivel da superfície encardida dos passeios, pivetes de incenso e estampas sem santos nem divindades ardiam com o vagar das horas.
Manifestações similares tomaram as artérias da cidade uma mão cheia de vezes, aspergindo ruas e transeuntes com as temerosas fumações.
Repetem-se hoje, cento e seis dias que são passados sobre o solstício de Inverno, jornada dita de Cheng Ming, o Dia dos Finados do povo chinês, subtilmente aclamado como a jornada da Festa da Claridade.
Festividade milenar, o Cheng Ming (celebrado todos os anos no dia 4 ou no dia 5 de Abril) mergulha as suas raízes, como muitas das tradições ainda vigentes na China nuclear dos nossos dias, na madrugada dos tempos:

“Chove sempre na temporada do Cheng Ming.
As pessoas, a caminho, têm vontade de morrer.
Pergunta onde fica a taberna,
E o menino pastor indica a aldeia de Xing Hua


Assim descreve Du Mu, poeta chinês do século IX, a carnação dos sentimentos no ocaso do Festa da Claridade.
O Cheng Ming conforma uma das vinte e quatro temporadas em que se divide o ano agrícola chinês pelas contas do calendário lunar. A tradução literal do termo ostenta a subtileza da espiritualidade oriental. Chen Ming é, literalmente, a “claridade”, a mais “pura luz”.
O fim do segundo mês do calendário lunar, que coincide na matemática do calendário ocidental com o fim de Março e o início de Abril, costuma ser numa grande parte da China, um tempo de rigor, mas também de rejuvenescimento.
Chove no imenso Império do Meio, mas a chuva traz consigo as benesses da Primavera. A temperatura ganha bonança depois de um Inverno rigoroso, as sementes germinam, as plantas voltam a brotar e os agricultores retomam os cultivos com uma vigor renovado.
A data terá começado a ser comemorada, tanto no período da Primavera como na altura do Outono, a partir do século V antes da nossa era, como forma de manter viva a memória de Je Zitui.
A China não era então a nação milenar que hoje se conhece. Espatilhada e entregue aos humores dos senhores da guerra, o território era composto por vários reinos, um dos quais era o reino Jin, sediado no que hoje é a província de Shanxi:

Como se apaixonara pela concubina Li Ji e querendo passar o trono ao filho que teve com ela, o soberano dos Jin obrigou o seu herdeiro e primogénito, Shen Sheng, a suicidar-se. Perante a decisão e temendo também pela vida, o irmão mais novo de Shen Sheng, Chong Er, fugiu do país.
O êxodo não foi feliz e muitos foram os obstáculos com que o príncipe se deparou na sua jornada. Quando no exílio, Jie Zitui, um fiel seguidor de Chong Er, cortou a carne do próprio corpo para que Chong Er não morresse de fome.
Anos depois, quando Chong Er voltou ao país dos Jin e subiu ao trono, Jie Zitui caiu na oblivição, vivendo uma vida simples, sem cargos de relevo ou mordomias palacianas.
Recordado por alguém da ausência de Jie Zitui, o rei Chong Er, amaldeiçoando o esquecimento, enviou um emissário ao fiel servidor, convidándo-o a aceitar uma grande honra. Jie Zitui, porém, recusou o convite.
Chong Er não teve outra solução senão ir convidá-lo pessoalmente. Quando chegou à casa de Jie Zitui, informaram o soberano que o servidor se retirara para a montanha Mian, onde a mãe enferma vivia.
Chong Er mandou localizar Jie Zitui e enviou legiões de soldados com o objectivo de o encontrar. Alguém disse ao rei: "Jie Zitui é um bom filho, se incendiar a serra, ele terá que proteger a mãe e aparecerá".
Chong Er aceitou a sugestão e ordenou que se incendiasse a montanha resplandecente. As chamas abrasaram durante três dias, o fogo calcinou as árvores e as pedras de tão verdes montanhas. Mesmo assim, Jie Zitui não apareceu.
Adormecido o fogo, batedores do soberano esmiuçaram as entranhas da serra e encontraram os cadáveres de Jie Zitui e da sua velha mãe sob a sombra esventrada de um salgueiro queimado. Muito triste, o rei Chong Er mandou construir um templo em sua memoria e rebaptizou a montanha Mian com o nome de Jie.
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A partir de então, no dia da morte de Jie Zitui - um dia antes do início da temporada agrícola de Cheng Ming - o fogo tornou-se um objecto maldito em todo o país e mesmo as refeições ingeridas se resumiam a comidas frias.
Em sinal de admiração pelas nobres virtudes de Jie Zitui, o povo, especialmente o da província de Shanxi, pendurava na porta, um ramalhete de salgueiro e um biscoito em forma de andorinha com o objectivo de honrar a memória do mártir.
Depois da fundação da República Popular da China, a data assumiu novas características. A passagem do Cheng Ming é assinalada com a romagem aos cemitérios e aos columbários e com a visita à tumba de familiares falecidos ou de mártires ou personalidades que contribuiram para a glória do país.
A data marca também a passagem do Inverno à Primavera. As chuvas frequentes que caem durante o período favorecem a arborização, o que explica as campanhas de arborização e reflorestação conduzidas em algumas regiões do país.
  • Nem sempre chove na temporada do Cheng Ming. Mas o céu está de ácer.

terça-feira, abril 04, 2006

Vozes da China: Li Po


Os Corvos que Grasnam ao Crepúsculo

Douradas nuvens banham a muralha.
Os negros corvos grasnam sobre os ninhos,
luras nas quais quiseram descansar.
Ao longe, a jovem esposa suspira, só e triste,
as suas mãos abandonam o tear,
os seus olhos fixos na cortina azul do céu,
véu que parece separá-la do mundo,
como a neve, leve, escurece o rio.
Está só: o esposo viaja por países longinquos:
todas as noites dorme só em seu leito.
A saudade esmaga-lhe o coração,
e as suas lágrimas, como chuva delicada, regam a terra.

A partir da tradução castelhana da Obra Poética de Li Po (701-762)

Oliver


Gosto da literatura carnal, das páginas onde a dor e a fragilidade humana irrompem com a violência das rajadas e a voracidade dos tufões, despidas de meneios e cruas, tal como as encontramos nas mãos dos mendigos e nos olhos dos loucos.
Admirável é, por isso, essa menina dos fósforos, açúcena de todas as fragilidades, que Hans Christian Anderson criou para criticar uma sociedade que deixa morrer o futuro.
É o realismo amargo com que Miguel Torga enfeita as personagens dos "Novos Contos da Montanha", umas vezes crentes, outras sediciosas, outras ainda simplesmente obstinadas e malévolas, que a maldade é um rasgo de alma omnipresente e tentador.
Dickens é, nesse âmbito, quem melhor consegue colocar a maldade entre nós, torná-la quase frugal e palpável.
Cria malabarismos gravosos onde sobrevivem personagens eternas: o orfão para quem o futuro não é mais que o sofrimento adivinhado e um rasgo de incerteza, o ávaro de coração pétreo e, mais importante, a sociedade dormente que resvala, por conveniência, para o abandono negligente e impávido.
Ontem vi "Oliver Twist", a nova versão, filmada por Roman Polanski. Mais lacerante porque mais realista, a versão de Polanski é também mais cativante e de mais fácil digestão.
Ganha à versão de David Lean, filmada em 1948, por não diluir a trama de Dickens numa fantasia musical, onde a pungência do "fado do desgraçadinho" rouba ao enredo a acutilância da crítica social.
A versão de Roman Polanski conserva numa tal capacidade um dos seus maiores atractivos. Consegue também aquilo a que se propõe: tornar tangível e odiosa a maldade de Bill Sykes, humana a desgraça de Fagin e possível a complecência social com que o mundo se ilude a si mesmo. Como hoje, de resto.

segunda-feira, abril 03, 2006

China Insight (II)


A Menina do Tambor, Seac Pai Van, Coloane