segunda-feira, março 21, 2005

O regresso da chuva

Respingando dos beirais nas horas mortas da madrugada, a chuva tem como que alma própria, é a companhia serena do primeiro sono, embala tanto como o mar calmo.
Subtraída a essa circunstância, a chuva – branda ou forte – é quase sempre incómoda pela impressão que suscita, pelo alagado que causa, pela indisposição em que mergulha o espírito. Se diurna, batendo nas vidraças, é uma prisão líquida que obriga aos entrefolhos do lar, que conduz ao usufruto imposto da modorra que aniquila.
Cai desde ontem com toada certa e com uma macieza insuspeita e reconforta vê-la tombar esparsa mas insistente, com a benesse de um milagre e a suavidade de um suspiro aliviado. Percebo, enfim, a ampla quadratura do amor telúrico. No verde pálido que ganha de novo cor de saúde, na água nascida da pedra e na pedra feita há um equilíbrio em retoma, um traço de normalidade que fazia falta. Sorri de novo a Terra, e eu, escondido por trás da vidraça, não posso estar senão feliz.

sexta-feira, março 04, 2005

Dos significados do frio


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Da solidão se ampara o frio ou ambos se fazem um, como se não existissem caldas solidões. Eis pois a voz dos poetas confrontados com a instância polar do Inverno no reverso da pele, no âmago da criação, no berço da linguagem. Que na rua se diga da velhice ser o inverno da vida ou que se acusem os reservados e os sérios de semblante de serem frios, pouco haverá a refutar pois a língua é na sua concretização mais natural como a agua que se molda aos refrêgos do solo e das encostas. Aos poetas ninguém há que se atreva a por em causa o que quer que seja; acto maior da expressão da liberdade, a poesia colore mais que as essências todas do mundo, que o pastel e a urzela, que o anil e o açafrão e inaugura sensações, leves ou densas, que nos situam face a tudo que nos rodeia com uma predisposição filológica, quase moral. A poesia predispõe-nos para amar, para querer, para possuir, para o quartzo e para a nuvem, para o frio.
Para o frio. Para o frio a poesia relega o lugar efémero ou eterno da ausência, uma solidão que se torna palpável e lânguida porque fria. Em Sophia por exemplo:

"No ponto onde o silêncio e a solidão
Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
Tão nítido e preciso era o vazio."

Outros como Alberto Caeiro, no tom submisso de humildade que lhe é característico, não povoam o lugar poético do frio nem com demónios, nem com rituais de ausência, nem com nada que não seja o frio exorcizado, só o frio, natural como todas as outras manifestações,

"Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,
Porque para o meu ser adequado à existência das cousas
O natural é o agradável só por ser natural.
Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,
Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno,
Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,
E encontra uma alegria no facto de aceitar
No facto sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.

Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece
Senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida?
O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,
Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime,
Da mesma inevitável exterioridade a mim,
Que o calor da terra no alto do Verão
E o frio da terra no cimo do Inverno.

Aceito por personalidade.
Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,
Mas nunca ao erro de querer compreender demais,
Nunca ao erro de querer compreender só corri a inteligência,
Nunca ao defeito de exigir do Mundo
Que fosse qualquer cousa que não fosse o Mundo."
Em nenhum existe pois o frio lugar não estático, lugar aprumado, lugar presente, farto em vida e em bondade. Mesmo quem ama, ama o corpo quente, o inferno da pele, o brasume quase extinto dos lábios.
Como será, pois, isso de se amar o corpo gélido de uma mulher?

Do frio que faz

Merda de dias, estes em que o frio se enfia debaixo das unhas e trepa por nós como se fosse uma peçonha estática, uma lâmina que corta por dentro. Diabo de frio este, ou frio do diabo, que nos faz avançar a passo urbano onde não existe outra coisa senão montes e pinhais fuscos e motivos para amparar o ritmo e descansar a vista, para fazer dos dias uma écloga virgiliana só que sem Inverno, nem gelo, apenas um brando sol na luz directa.

terça-feira, março 01, 2005

Bock de Esquerda

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Razão têm os fulanos do marketing e da publicidade. A tradição não é mesmo o que era. Que o digam Louçã e companhia, brindando a uma vitória pretensiosa nas eleições de 20 de Fevereiro com cerveja, bebida sem classe (que é como a comandita do Bloco quer a sociedade) nem nobreza outra que não seja fazer mijar (muito).

Ainda que seja louvável a fidelidade aos princípios ideológicos (que concebem como sacrilégio laico e crime de classe o festejar-se qualquer coisa com champanhe ou mesmo espumante raposeira), a malta do Bloco bem podia ter festejado com outro tipo de néctar, mais espirituoso e não tão paupérrimo que, quem veja tais festejos e louvores não pense que o Benfica ganhou o campeonato e que, assim sendo, os sem abrigo do Intendente festejam. Até um copo de água da serra da estrela teria sido augúrio de mais seriedade.

Nisto da política, como nos vícios e nos prazeres, o pressuposto e o entendido contam francas vezes mais que o dito e feito cristalinamente. Veja-se.

Para mau bebedor, meio copito basta, qualquer que seja a fragrância ou o teor, a substância ou o propósito. Quem bebe com o costume já conhecido, habitua-se a enxergar mais para além do que o fortuito trejeito de emborcar; percebe com diligência quando a bebida é um hábito, um prazer ou a perdição. Lê no sarro e nas paredes dos copos a impulsividade ou a temperança e até o carácter de outros bebedores, quando não discerne mesmo a robustez da sua conta bancária.

Que da malta do Bloco não se esperava que celebrasse com baldadas cheias de whisky envelhecido é uma coisa; que tenham escolhido uma poção mágica tão insalubre é outra por completo distinta. Num gesto de bom gosto os bloquistas podiam ter arranjado um substituto consensual, um néctar à medida do Bloco, tinto, do Cartaxo e carregado, de preferência. Tinto do Cartaxo é bebida de carácter. Portuguesa. Correcta.

A ideia de festejar alguma coisa com cerveja diminui, por si mesma, a intensidade do que se festeja. A cerveja é, possivelmente, a beberagem mais ociosa que alguma vez fez ninho nas estantes dos supermercados, nas prateleiras dos frigoríficos, no piso gasto dos balcões. É uma bebida do desfrute, 33 cl de pura segnícia, a patrocinadora oficial da moleza.

Um tal estatuto explica o encanto de se despejar cerveja atrás de cerveja pela goela abaixo: enquanto se bebe uma cerveja não se faz mais nada, desfruta-se o futebol, a vizinha que cruza o passeio, o tempo e as nuvens, mas não se faz mais nada. Por beber uma cerveja a malta diz coisas absurdas como sejam,


- Mamei ali uma cervejola que me caiu que foi um regalo


e acha-se importante na imensa quadratura do círculo, cerveja, cerveja, ópio do povo.

Cerveja não rima com semana académica ou queima das fitas mas ninguém tem dúvidas do potencial de poesia que está imanente a uma intersecção das duas, com os excessos e os desvarios, a inconformidade e o descalabro e a ruminante sensação final de que uma semana de queima das fitas é uma semana perdida na vida de qualquer um, sendo que o que se perde é tantas e tantas vezes ignoto. (Cansaço, muito cansaço.)

Ver a malta do Bloco com a cervejola na mão tem um não-sei-que de insidioso, de queima das fitas política onde não há palavra de ordem que persista, nem convicção que resista. Posso ser só eu, mas ao balcão e na política, cerveja não enche olho.