segunda-feira, agosto 22, 2005

Hac Sá Pop Bay

Repudio com alguma ligeireza o romantismo fácil e os lugares comuns da ternura apreendida nos roteiros sentimentais dos filmes de Hollywood e das escritas rebuscadas e clamorosas, onde heróis e heroínas são fleumáticos e convincentes porque vivem de uma golfada o que se não vive numa vida inteira.
Tais lugares comuns da ternura assimilada são tudo o que nos resta, dir-se-ia. A nós mortais, ao conluio do possível no espectro mínimo e cinzento dos dias, sensaborões, idóneos, parcos. Já que não podemos ser Zeus, em touro transformado, tomando por seu dorso a bela Europa, que possamos ter ao menos dois palmos de areal onde possamos enterrar os pés, onde possamos perseguir sem enleio a linha da rebentação e pisotear, sem afã, nem vil intento a espuma que se apaga sobre o areal.
Lugar comum, o das veleidades do mar. (Tão pop que somos.) Ocupa por todo o ser e em toda a individualidade, o espaço precioso dos momentos tranquilos, da calma desejada. E mesmo no sul da China, onde o mar não é mais que um corpo terroso, amarelecido não se sabe sabe por quantos séculos de danças e contradanças das marés, não há como fugir ao peso e à preciosidade das ondas arroladas sobre o curto areal. Tão pop que se ouvem ao longe bichanar sobre a pele.
O bruuuuáááááá magnífico, quando o mar crepita sobre o areal, quando toma nos folhos a areia lânguida tem a distinta universalidade dos gestos, dos sons que envolvem de familiaridade o corpo, divague este por onde divague, possa ele fugir para onde fuja. Por ser tão familiar entopece numa letargia de brandura que conduz a casa, estrada imensa e vasta.
A baía de Hac Sá, na costa de Coloane que está voltada ao mar do Sul da China, aberto e largo, é uma meia lua dourada, abrigada do vento e da voracidade dos relógios. É uma língua de mar fonâmbula, quase triste (sem o tom verde azulado das àguas do Atlântico na costa de Portugal), mas que oferece o fabuloso desígnio de ser um recôncavo de costa onde se vê, de onde em onde, um banhista, exíguo e só. E onde se não ouve outra coisa senão o vento fluir e o mar rasgar sobre o areal escuro, rugindo tão mansamente que se chega a duvidar se não será este mar dourado e escamoso o tal dragão desaparecido de que falam as lendas e as histórias chinesas.
Pop-pop. Tão pop que me sinto.

sábado, agosto 20, 2005

Green Was The Colour...

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O Bem de Todos

Em última análise, na questão da disciplina dos espaços públicos, uma solução eventual podia passar pela punição efectiva de tais melindres do carácter português: o cuspir para o chão, o abandono dos restos do farnel familiar naquela curva da estrada ou do cocó do cão no areal talvez passassem a ser actos olhados com algum desdém se custassem dinheiro aos portugueses.
O príncipio do ïnfractor-pagador" é encarado, no campo da disciplina criminal como normativo. Quem comete um crime, contra outrém ou contra a sociedade deve, de acordo com os códigos processuais vigentes, "pagar pelo mal feito" ora pela privação das liberdades fundamentais, ora pela prestação de uma série de gestos e de condutas que funcionam como termo ilibatório.
No âmbito da disciplina cívica, as coisas deveriam, caso existisse algum príncipio de similariedade válido (e rígidido) funcionar de forma idónea. Mas a simples constatação, de uma lóica quase aritmética, que o príncipio da punição é por si mesmo uma possível solução para incutir, ao menos, nos portugueses o dom da ponderação e do agir reflectido (pensar nada custa, mas lançar um papel para o chão bem que poderia começar a custar alguma coisinha) é por si mesma, a constatação de um nado que nasceu morto.
Três são as razões que assim o premeditam, que forçam a ideia a abortar ainda na sua génese. Por um lado existe o paradigma das estruturas. A adopção de uma tal regulamentação teria que partir do pressuposto de que as possibilidades logísticas se encontram distribuídas de forma idónea entre todos. Tal seria conceber um sistema estruturado e viável de recolha de lixo, de saneamento público, de ordenamento urbano. Tal seria pressupor que desaparecessem de qualquer aglomerado populacional - urbano ou rural - os fios de electricidade cruzando os céus, as linhas telefónicas dependuradas de frageis tótens de madeira e presumir que não existem (como Lisboa parece presumir) uma série de disparidades fundamentais no ambito das coisas mais simples. Talvez o facto que melhor exlica por que razão uma grande parte dos portugueses continuam a deixar o lixo na borda da estrada seja unica e estritamente a ausência. Como alguns moram a dezenas de quilometros do caixote do lixo mais próximo, a solução de recurso acaba tambem por ser a mais fácil: varrer o pó para debaixo do tapete e esconder os velhos electrodomésticos sobre a verdura marginal.
O segundo motivo que poderia premeditar a inviabilidade de uma decisão da índole ganha substância na extrema permissividade e dormência com que os portugueses olham para as coisas. A passividade é uma espécie de herança genética no que concerne a mudanças sociais.
O português típico prefere esperar que chova, espera que reverdesça, esperar que alguém dê uma mão ( na esperança que se transforme em duas) mas raras vezes se lembra ele próprio de plantar uma árvore, de limpar uma nesga de chão. Vive firme, o português, na convicção de que se ele não se aprestar a fazer as coisas, alguem as fará.
Mas o terceiro motivo é o que mais preocupa. Prende-se com a deturpação voluntária do pensamento político. Não há português que acredite que isto de se viver em democracia é uma valsa a dois andamentos: os dos direitos e dos deveres. Do alto do premeditismo egocêntrico em que vivem, os portugueses apelam sempre, sempre aos direitos que têm e raramente se recordam que também tem deveres. Para consigo mesmos, para com os outros e mesmo para com a figura do Estado quando não ultrapassa a figura e o preceito institucional que o justifica: o de solicitador do bem comum.
A maior parte dos portugueses, claro está (os que não têm caixote do lixo à porta, por exemplo) não iriam perceber por que razão teriam que pagar por lançar um papel para o chão ou por cuspir ou por fazer o que quer que fosse. Afinal sujar é também um direito. Dos muitos que se ganharam com a tal Revolução.

quarta-feira, agosto 17, 2005

Que badalhocos, senhores!

O calvário dos fogos que deixaram, no rescaldo do pico do Verão, um país calcinado e horizontes de cinza (em alguns lados) por onde quer que a vista se passeie não espalhou, ao que parece, apenas a devastação pelo país. A julgar pelo que se escreve nas páginas dos jornais e em alguns blogs ditos de peso no âmbito da blogosfera portuguesa, as " ignições" - termo político e ilibatório para atenuar a magnitude do problema recorrente em que os incêndios se tornaram - semearam também, no fértil domínio dos intelectuais da nação, a idiossincrasia do autismo.
Vital Moreira, no "Público" e Paulo Varela Gomes, em qualquer outro lado, fazem desta feita a apologia de que a falta de consciência ambiental dos portugueses é um dos combustíveis morais da onda de incêndios que meia volta deixa Portugal assim, a negro carbóneo e triste.
Varela e Moreira, observadores anónimos dos hábitos dos portugueses, com uma sociologia muito própria, descobriram aquilo que os portugueses sempre souberam sobre si próprios, com a nuance de que os portugueses estão um patamar acima na gnose de si próprios.
Os portugueses sabem que velhos hábitos custam a morrer. E os velhos hábitos não são apenas os que concernem os hábitos ambientais (algo volumétricamente novo no catálogo dos deveres do portugueses, habituados desde sempre ao desenrasque mais que á civilização), mas os que concernem ao respeito por valores mais relevantes, como sejam os ideais políticos de cidadania ou sócio-políticos de comunidade.
De certa forma, há nesta atitude dos portugueses um demissionismo concreto que resulta em muito da questão da inviabilidade do país. Como é que um país pouco mais que minúsculo, com dez milhões de almas cordatas, sem problemas de índole política que apontem ao conflito, se pode revelar virtualmente um ermo ingovernável?
Se perguntarem aos portugueses e os escutarem sem a punção libatória de os caricaturizar em seguida, eles vos dirão que na política portuguesa há uma dose de autismo tão exponencial que parece genéticamente herdada do sebastianismo derramado em Alcácer Quibir. Os políticos portugueses, todos - independentemente do espectro ideológico de que se dizem concebidos - julgaram que a construção de uma malha de asfalto e de autoestradas poderia lançar o país na senda do desenvolvimento e que a subida dos preços para níveis europeus situavam o país alguns graus a menos na periferia da Europa.
Perderam-se na megalomania de uma Exposição Universal e no colorido de um Europeu de Futebol e fecharam os olhos às lacunas estruturais que o país apresenta. Um país envelhecido, com o interior votado ao abandono, que tornou a simplicidade de uma infinidade de coisas num sarilho de burocracias, que se deslumbrou perante o dinheiro de Bruxelas e se deixou entregar a uma certa lascívia imanente ao novo-riquismo esbanjador, julgando de si mesmo que no futuro tudo se conjugaria com a toada da prosperidade.
De um mesmo autismo parecem padecer os analistas do país. Bem, talvez não seja autismo; talvez seja apenas Síndrome de Lisboa. Seja qual for a patologia, os sintomas apontam para um desconhecimento efectivo do quotidiano de uma grande parte dos portugueses.
Dos portugueses que deitam móveis velhos e electrodomésticos pelas ribanceiras porque se cansam de esperar pelas promessas eleitorais, pelos políticos que dizem de quatro em quatro anos que é no mandato subsequente que terão um caixote de lixo à porta, para que os dejectos domésticos possam ser recolhidos uma vez a cada quinze dias.
Dos portugueses que fazem coisas criminosas como perfurações ilegais ou poços não regulamentados, ultrapassando diplomas e convenções, apenas porque essa é a única forma de conseguir ter água a correr das torneiras por não existir uma solução municipal nesse sentido.
Dos portugueses que não percebem porque é que, existindo uma reserva agrícola nacional, por vezes é tão díficil fazer algo tão simples como semear e colher no seu perimetro ou criar com a foragem dela resultante meia dúzia de cabeças de gado.
Se os portugueses se demitiram das suas responsabilidades em matérias tão simples como sejam a consciência ambiental ou o respeteito pelos outros, não foi apenas um ar que lhes deu. Afinal, o exemplo vem de cima. Se os governos se têm demitido de Portugal, que razão têm os portugueses para não o fazerem?

quinta-feira, agosto 11, 2005

Oriental ao Coração

Daqui, de um canto da China, te escrevo. Como sei que todo o espírito humano se alimenta do fadário incomensurável da aventura, escrevo-te para que saibas também que grande aventura é esta do Oriente. Escrevo-te para que possas sentir também de que diferenças se fazem os dias, quando marginados pelo imenso delta das Pérolas.
E as diferenças são muitas, mais do que aquelas que poderás imaginar. Há em tudo um fulgor imenso de novidade: nos odores que sobem da rua, no néon dos Casinos, nos gestos e nos rostos.
Desembarcar assim, do nada, numa cidade como Macau é nascer de novo ou aportar a uma galáxia mais distante que o entendimento. A maior barreira é, desde logo, a língua: salta à vista e entra pelos ouvidos com a cadência de um tai fung e rodeia-te, como se fora uma fronteira indizível que te remete para uma ignorância diferente das demais.
Não podes em momento algum perceber por completo o imenso mar de gente que Macau é: no quotidiano da cidade são infindáveis os mundos que se entrosam, gente de terras tão exóticas que é impossível que as consigamos conceber mais genuínas num assomo de criatividade.
Macau é, então, um pequeno delta, imenso em pessoas que entram e que saem da exiguidade do território, que jogam a sorte e a vida nas roletas dos casinos, que formigam nas ruas como térmitas, que cozem sob um céu de àcer e de vapor, e assim constroem, numa azáfama irrefreável, uma cidade singular, de padrão e de modelo único. Parece europeia aos olhos, mas é oriental, profundamente oriental para todos os outros sentidos. Oriental ao coração.
O pior de suportar é, ainda assim, a sensação táctil que o calor induz sobre a pele. É a sensação de um réptil sofragando por dentro das veias, de uma caldeira imensa que e sopra um calor de purgatório, uma sauna de vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, com momentos tão brandos e raros de acalmia que chegam a parecer impossíveis, invenções da mente para congelar o corpo no ponto da paciência anterior ao desespero.
De resto, creio que poderias gostar de tudo o mais. O bulício das ruas, apesar do caos, entranha-se com a venialidade do deslumbramento: tudo te parece tão infinitamente novo que é impossível não te julgares rendido a determinada altura. Mas rendido, porém, a um tesouro que se renova a cada minuto na diferença que se faz notar a cada passo, a cada uma das ruas que atravessas.
A comida, o calor, o pensamento. Tudo se processa com uma cadência inusitada, plena de novidade e alguma sordidez, como se deste lado não fossem apenas os caracteres do alfabeto que se escrevem à esquerda morrendo, começando com a direita no horizonte. Tudo parece verter do contrário e marginar numa profusão de novidade. Se há um espelho para a Europa, em costumes e em dinâmica, esse espelho é, sem dúvida, a China.

quarta-feira, agosto 10, 2005

Jornalistas (2)

O providencialismo sempre foi uma atitude sensata. Sentemo-nos à espera que chova, à espera que ninguém se lembre de incendiar um pedaço de montado, à espera que alguém repare em nós numa curva da vida, à coca de um lugar soalheiro ou de umas risadas de sol que possam trazer no encalço, qeum sabe, novidades felizes ou paragens longínquas.
O providencialismo. O providencialismo recorda-me a poesia acomodada de Ricardo Reis, dura e nevrálgica, porque adivinha desenlaces quando a caminhada ruma ainda a meio.
Quando há meia dúzia de dias se anunciou a paragem das rotativas em dois dos mais históricos títulos do panorama jornalístico do país - "A Capital" e "O Comércio do Porto"- consignou-se o fecho dos diários como uma espécie de afronta à melhor tradição cívica, mesmo histórica de uma nação: diários com nome e com passado, com carisma e provas dadas na afirmação dos direitos e das liberdades, uma e outra publicações eram, nos derradeiros anos, muito mais simbólicas que viáveis.
Viabilidade, importa dizer, não é o mesmo que pertinência ou que necessidade. Jornais como "A Capital" e o "Comércio do Porto" ocupavam um espaço de diversidade e eram trunfos num baralho pluralista que tem, de há alguns anos a esta parte, vindo a ser reduzido de forma progressiva. Por isso eram e continuarão a ser, por muito tempo, necessários.
O desaparecimento de um e de outro titulo reclama o estrangulamento do espectro ideológico de intervenção, tornando-o mais parco e mais uniforme quando aquilo que o momento social impõe são ideias válidas e contributos.
Anunciada há muito a morte física de um e de outro título, surpreende a boa vontade das redacções agora votadas ao limbo exasperante da incerteza. Ultrapassaram o lugar comum do providencialismo de algibeira e continuam, num misto de jornalismo, de crítica e de lamúria, a manter vivos, noutro formato e com outros propósitos, os titulos que alimentaram até ao príncipio do mês.
Os blogs de "A Capital" e de "O Comércio do Porto" tem aquela feição particular das coisas que se acham amadíssimas depois de perdidas, o pendor romântico das mágoas e das desgraças e por isso há neles alguma graciosidade. Funcionam como uma espécie de "Big Brother" apontado para um drama particular que, desta feita, não ocupa apenas a primeira página dos jornais, não é uma estatística absorta na página quatro ou uma história de vida no capítulo da "Sociedade". Saltou para a redacção e por lá se instalou, com uma cadência inusitada mas não de todo inesperada.
A resposta a isto, diz o Sindicato dos Jornalistas, passa pela união de todos os trabalhadores, pela constituição de uma cooperativa capaz de inaugurar um novo jornalismo em Portugal, isento e livre da mão suspeita dos grupos económicos e dos interesses empresariais.
O Sindicato dos Jornalistas de Portugal é porventura a organização que faz falta em cada uma das républicas da Federação Russa para manter viva a ideia da glória dos sovietes, da glória dos povos, da ideologia socialista de linha dura. É um orgão demasiado preso ao passado num país que procura um rumo. Mas, porque não, apetece-me perguntar? Porque não investir numa solução que parta de um projecto onde as decisões não tenham que estar sujeitas a um décimo nono andar de Madrid, a indivíduos que encaram o jornalismo como máquina de propaganda, que o submetem aos interesses próprios sem salvaguardar nem direitos nem liberdades?
A resposta, pudesse eu enganar-me, tenho-a na ponta da língua. Providencialismo. Essa atitude manhosa de esperar que alguém nos acuda quando a vida encurva.

segunda-feira, agosto 08, 2005

Jornalistas (1)

Sobre fogos florestais há muito quem fale nestes dias: os ministros, os patrões, os bombeiros, quem fica sem tudo, quem não perde nada mas aproveita para aparecer na televisão. Falam os presidentes de Câmara e os responsaveis municipais pela protecção Civil, os populares e as imagens de Inferno que entram pelos televisores adentro.
Falam os jornalistas deslocados no terreno e dizem, em chavões que se repetem (porque não há mesmo muito que se possa dizer), que as chamas avançam em não sei quantas frentes não controladas, que destruiram uma ou outra casa no entretanto, que há falta de meios e de bombeiros, que o fumo é espesso, o ar irrespirável.
Falam os outros jornalistas, os que nunca sairam das suas altas torres de Lisboa e se indignam porque a jornada faz amanhecer a capital encoberta por um novelo de fumo grosso, que esconde as colinas e o casario e isso por si só é para eles uma tragédia.
De certa forma lembram Nero vendo Roma a arder a seus pés, sendo que a nuance é preciosa: Lisboa não arde. Amanhece envolta num lençol de fumo, mas não há em lado algum uma lambara, um braseiro que se expande.
E os jornalistas de Lisboa, ciclópicos, com um olho só para os fumos da capital, julgam possuir, nos seus gabinetes, o direito à indignação, o direito a escrever sobre o pinhal queimado e as serras denegridas e o pânico das populações.
Para muitos o problema é, pura e simplesmente, a repetiçao dos mesmos erros. Para alguns dos cronistas de gabinete e de microsoft word, só os cegos caem duas vezes no mesmo buraco. Manuel Carvalho, sub-director do "Público", assina numa das edições destes últimos dias do diário um artigo de opinião sobre o que já ardeu, o que falta arder e as razões porque arde Portugal sempre que o calor aperta um bocadinho mais.
A pensar como Carvalho pensa, se o país arde como tem ardido é porque por essas serras adiante as coisas são uma selva, os matos não são limpos, as encostas abundam de tojos e silvas . Para quem lê o artigo, sentado numa esplanada lisboeta, remenesce um certa sensação de isenção. Como se fosse líquido que a ênfase no tratamento destas coisas deve ser posta não no combate, mas sobretudo na prevenção, Manuel Carvalho parece fazer a apologia de que a culpa do braseiro em que se tornou o país é, antes de mais, de quem tem um pedaço de montado para limpar e não o faz.
A opinião de Manuel Carvalho, ainda que respeitável, é a opinião do jornalista urbano, moderno e autista, do jornalista que se encontra na encruzilhada entre o titulo do artigo e o aparelho do partido.
Só de um lugar da indole, de uma encruzilhada, se percebe a forçada inocência do argumento do cronista. Ou o sr. Carvalho acredita piamente na boa vontade dos homens (o que não é coisa de pessoa crescida) ou então (o que é pior) já leva tantos anos de actividade jornalística que já sabe o credo do crente e do pregador, o floreado das elites e o infrutifero paleio dos políticos.
A ênfase na prevenção é eficaz em questão como a SIDA, uma qualquer doença em que a vacina possa valer de algo. Os incendios não são nem doenças, nem desígnios das divindades. Não são sequer permeios inveitáveis como um tufão, um terramoto ou uma chuva diluviana despegada do céu.
Se existem, existem a maior parte deles porque interessam a alguém. E não há prevenção que possa valer contra a malícia dos homens. Não há mata, por muito limpa que se apresente, que não sucumba a um fósforo que se acende por mão sombria, que se não faça cinza perante a pressão de quem não tem escrúpulos.
O trabalho do jornalista, mesmo do jornalista urbano e acomodado, seria, antes de mais, o de desconfiar da sucessão causal das coisas: de duvidar da naturalidade de tantos e tantos fogos, de questionar a probabilidade de uma e de outra ocorrência. E em última instância questionar. Perguntar, a si mesmo e aos outros, porque razões não existe em Portugal um serviço nacional preparado para responder a este tipo de imponderáveis? Perguntar porque razão concessiona o governo o combate aéreo aos incendios a empresas privadas? Perguntar porque é que há dinheiro para comprar submarinos e construir estádios e não há para comprar uma mão cheia de Canadair's? Porque é que não se cumpre a lei que inviabiliza a construção de imóveis ou infraestruturas em terreno ardido durante uma década? Porque é que não se investigam todas aquelas histórias sórdidas que se ouvem contar sobre fogos que despontam depois da passagem de aeronaves ou de jipes ou de outras tantas coisas?
Perguntas a mais?