terça-feira, novembro 30, 2004

Livros

Pelas minhas contas - sobranceiras e muito pouco rigorosas - nem em dez anos conseguiria ler os volumes da biblioteca que tenho penosamente distribuida por caixotes e armários e gavetas e sabe-se lá mais por onde. Ao ritmo a que a leitura anda e tendo ainda mais em conta a disponibilidade para tal, são tantas as páginas, que chego a ter pena de não ser múltiplo ou de não existir pelo mundo uma vigésima quinta hora que passasse comedidamente devagar, para que uma hora de leitura rendesse como um milénio.
Para ler tenho ainda os hemingway's quase todos, os místicos, a poética de Ronsard e de de Rimbaud, os clássicos e os novos clássicos. E não descuro a leitura desejada de tudo o que é novidade nos escaparates das livrarias, mas a verdade é que olho para ela - para a novidade - com uma certa nausea também. Tenho a impressão que o trânsito editorial tem um certo paralelo com a prostituição de luxo: em ambos, para se chegar a algum lado só é necessario ter-se nome.
Este ano, o São Nicolau dos livros parece que forrou as livrarias com ofertas variadas. Assim, temos autores para todos os livros, temos livros que são livros e outros que são metalivros. Há a primeira ficção de Artur Agostinho, Os Abutres, e um romance de José Rodrigues dos Santos, A Filha do Capitão. Há o regresso de Vasco Graça Moura e António Lobo Antunes, desta vez fotobiografado. Há até as Teorias do Nilton, para quem seja mais ligeiro de leituras. Quantos destes valerão mais pelo obra do que pelo nome que carregam na capa?

Imagens

O "discurso da incubadora" é daqueles discursos que daqui a uns anos ainda movem àgua e fazem farinha. Se por mais nada não for, porque é rídiculo, é piegas e, de certa forma, sintomático da forma como o executivo encara a governação: como uma brincadeira de crianças, em que as crianças fazem birra se lhe ralham um bocadinho. Se Santana Lopes fosse um bom político (ou uma sombra que fosse) vingava as críticas. Governando.

domingo, novembro 28, 2004

Napoleões (de bolso)

Suponho que sou um sujeito comichoso. Há uma série de manifestações no moderno conteúdo "Portugal" que me causam uma urticária de indole quase cerebral, um borboto mental e manifesto. Fico com as ideias tão baralhadas que quase se me escapam as proporções da idoneidade, da aceitabilidade e da amplitude do normal.
Passo a explicar: supostamente Portugal é um país civilizado, democrático, de costumes brandos. Subrepticiamente, é tambem um país de nevralgias públicas. Senão veja-se: há meia dúzia de dias, chegou-me às mãos, com um atraso consideravel um exemplar da "Única" (a revista de mundanidades que acompanha o "Expresso") de 6 de Novembro. Na capa, uma alusão nevoenta ao regresso de Napoleão, com o que parece ser um fotograma retirado a uma produção cinematografica.
Folheando a revista, compreende-se o rotundo equívoco. Afinal, a orquestratura da capa, com Hollywood só tem mesmo a afinidade da parecença. O circo bélico por ali encenado, nas páginas primeiras da dita publicação, não é mais que o capricho fundamental e fundador que tem a pomposa e abjecta denominação de "Associação Napoleónica Portuguesa", agremiação "sui generis" cuja finalidade estrita é promover guerras de brincadeira com orçamentos de milhares de euros. Se é verdade que cada um faz de seu dinheiro aquilo que bem lhe apetece, não deixa de ser um "fétiche" abusivo para um país com tantas disparidades sociais. Capricho corporizado pelos ilustres médicos, advogados e cidadãos que engrossam o contingente de associados da dita confraria Napoleónica.
Mas a peçonha não é nisso que tem origem. É mais na evocação histriónica de um nacionalismo vazio que está imanente a tais encenações bélicas. Dá azo a uma urticária dos diabos, ver um país movido a expensas de glórias e feitos passados. Mais comichoso será julgar que os discursos de exaltação nacional parecem estar na moda. Assassinam o futuro, eu diria.

sábado, novembro 27, 2004

Desafio aos fiéis destas navegações

Este ano até existe para os lados de Belém uma armação exagerada que dizem ser a maior "árvore" da Europa. Mas já pensou naquilo que, no seu intimo, pede ao Menino Jesus ou ao Pai Natal ou ao Buda ou seja lá a quem for? O que gostava de receber? E que os outros recebessem? Deixe desejos e sugestões...

PS: Já agora, caro Menino, este ano o que vinha mesmo a calhar era um empregozito. Não precisas no estábulo de um assessor de imprensa?

sexta-feira, novembro 26, 2004

O DVD voador

Isto de se escrever sobre o Benfica tem umas coisas que se lhe diga. Conheço benfiquistas de todos os géneros. Dos que roncam grosso e à moda do Porto, aos benfiquistazinhos pequeninos, que nao se lembram da ultima vez que o Benfica colheu as glórias do campeonato por serem por esses dias projectos de pessoas, todos partilham o sobranceiro sentimento de se sentirem parte de alguma coisa grande, ainda que não saibam muito bem explicar de que amplitude e porque razão tanta grandeza.
Conheço benfiquistas nascidos em 1971 que se lembram com lucidez total das fintas e das raviengas do Eusébio nas duas finais dos campeões e conheço benfiquistas que falam de penalties nao assinalados em 1986, de erros crassos dos arbitros no jogo da segunda mão da supertaça de 1996 e açambarcam com um amor filial essas memórias como se elas fossem tangíveis e palpaveis.
Conheço benfiquistas que são adeptos patologicos: adoecem se o Benfica nao ganha, nao consolam a mulher se o Benfica perde, discutem fervorosamente se o Benfica empata. Conheço outros comedidos e calados e outros que são do Benfica por herança e dizem que um recanto da alma só pode ser vermelha. Por ser o Benfica tão manifesto e tão plural, é justa que se reconheça no nome do Benfica alguma grandeza. Ligeiro seria dizer que o Benfica passeia-se muito da reputação.
E é por ser o Benfica ente de grandeza, que escrever sobre o Benfica não é escrever sobre arroz de tamboril ou sobre pipocas caramelizadas. Escrever sobre o Benfica tem muito que se lhe diga. Muito é, esclarecidamente, os tais sete milhões inflacionados de Benfiquistas que se diz existirem espraiados por esse pais fora. Convenha-se que ter sete milhões de Benfiquistas à perna não deve ser tarefa fácil; pior, só o Salman Rushdie com a fatah arremessada contra ele pela metade mais flibusteira do mundo, o exército dos anjos "allahdos".
Desvirtuando as possiveis fatah's da casta benfíquica, comovo-me até com as caricias namoradeiras que se trocam lá para o lado de Lisboa. A delegação cardinalicia do SLB decidiu-se, ao que parece, a levar ao Coro dos Pequenos Políticos de São Bento ecos desse grande problema nacional que são as irregularidades nas arbitragens de futebol. É que, sejamos francos, caramba: já é exagero tanta pouca vergonha dentro das quatro linhas, tanto olho tão pouco enxuto, sr. ministro, sete milhões de portugueses viram que aquela bola entrou e temos aqui para si, sr ministro, um dvdzinho onde poderá ver mesmo que a redonda lá foi dentro.
Intrigado estou eu é com a resposta do ministro:
- "Só por cortesia é que o dvdzinho não voou pela janela fora..."
Será que o ministro não tem medo de uma fatah de sete milhões de benfiquistas?

domingo, novembro 14, 2004

Faina Fingida

Muito espaçadamente continuaram a entrar pelas águas dentro. Quando alcançavam as espumas ao largo faziam que deitavam redes às profundezas, gritavam as rezas da faina e trovejavam contra toda aquela imensidão, os anos de sal e as noites de vigília agarrados aos remos.
A quase todos não chegavam os dedos das mãos para falar das vezes em que a fúria das cristas os arremessara para o temporal convulso e não bastava a coragem da sobrevivência para recordarem todos os nomes que se escondem no escumalhal da rebentação.“ O mar não tem cabelos”, repetia o Soito antes de despedaçar as vagas com um puxão de braços.Os outros assentiam e olhavam para o largo, marcando com o olhar pedaços imperceptíveis da imensa vastidão, como se todo aquele verde fosse um berço e um sepulcro e fosse possível apontar de onde a onde, como num mapa escorreito em tragédias, os dias e as ondas do infortúnio: o Zé Bravo ao fundo, o Miqélense mais adiante, o Potro ao alcance de uma mão e muitos, mais do que alguém de memória farta possa cuidar, na ânsia do mar para além da demarcatura do horizonte.
À proa, entre duas ripes travessas onde ia parar o pescado nos dias cristalinos da estiva, os ingleses, dentro de impermeáveis alaranjados, amofinavam-se ao sôfrego balançar da pequena embarcação e olhavam para as ondas mais com despropósito do que com respeito.A ele, o mar desaconselhava aventura: os olhos amarelos e cândidos deixavam adivinhar a convulsão visceral e a fraqueza das tripas e do espírito. Ela mostrava uma imunidade pouco habitual ao pendular e ao revolver do barco, quase como se as vagas fossem um imenso carrossel de vento e de espuma e a pradaria oceânica a mais excitante das ousadias. A intervalos curtos, quando o bote granjeava uma onda mais densa, ela ria e repetia com um fervor inusitado, “Hou mai gaad! hou mai gaad!”.
Os homens riam também, agarrados à mecânica dos ramos e com os olhos no inglês encardido e frouxo, debilitado pela fúria dos seus próprios humores, gritavam alto para que o oceano todo ouvisse,- Eh, Mestre, esta está a precisar de um home a sério. De um que lhe carregue com quantas cargas tem o mar..."
O Soito respondia com palavras breves, quase murmuradas, “O que se quer é que pague”, e olhava para ambos os bordos, o bom e o do estio, e para o lençol imenso em que a barca se embrenhava e cuidava para si que as mulheres no mar são um perigo, a perdição dos homens, que a única coisa que regenera um homem como a calma e o sal do mar é a pele e a ternura de uma mulher e perguntava para si já com o mesmo enlevo fantasioso dos companheiros que pele e que calma se esconderiam para além daquela excitação pecaminosa, dos cabelos revoltos, de todos os mares e de todas as mulheres.
No antigamente, das redes cheias e das noites enoveladas e enfaíscadas em aguaceiros e relâmpagos, essas noites que cavaram nas vagas imensos cemitérios sucintos, o mar era o mar e as mulheres as mulheres e a uma única – a dos Navegantes – se pedia que galgasse com eles as ondas da partida e do regresso e enchesse as cestas e as canastras com algo mais do que esperança,- Mar salgado e desgraçado, quanto deste teu sal são lágrimas de Portugale ia acabando Soito com tais cogitações numa única e imensa mágoa e querendo para si que todo o mar é um lamento quando o mal de mar do inglês se quebra numa palidez mortiça e em golpadas incessantes de vómito e a inglesa deixa de dizer “mai gaad”, ou se o diz é por distintas razões, deixa de sorrir e quase que transforma a aflição numa ordem e a barca recua no percurso das ondas e toma a terra por sentido e a espuma da rebentação por destino.
O regresso vinha durando um nada. As cristas do fim da tarde são frágeis e pouco têm do assanhado do mar. Em pouco tempo se fizeram na costa, o inglês cambaleante e diluído e os homens com um quê de troça arredondando o traço dos lábios. Enquanto puxavam a embarcação para o areal, o Mestre foi buscar um copo de água açucarada para repescar no que ia restando do enjoo o ânimo do inglês: o homem emborcou a água em tragos ligeiros e aos poucos vestiu outra vez cores de carne e alguma compostura. Levou a mão ao bolso e de lá tirou trinta contos que deitou nas mãos do pescador, antes de se sumir pelo areal, agarrado à companheira e à brandura da brisa.
O pescador deitou olhos à ilharga, onde deixara, ao sabor da correnteza, as redes imaginárias com que pescava memórias e mágoas. O sol morria sem urgência sobre o horizonte. A meio-mar uma traineira de outras águas cortava as vagas. Tinha no casco, a letras douradas, “Huelva y Anunciación” e a indicação no pavilhão de que era europeia e infinita. Soito meteu o dinheiro ao bolso e sem raiva nem ternura excomungou a vastidão das águas e os seus novos cruzados de sempre,- Filhos da puta, roubaram-nos a pátriaAo seu lado, no casco do bote, um cartaz pregado convidava:“Ingresse connosco num dia de pescaria. Conheça o mar sem cabelos da faina de Portugal. 150 euros. Desconto para casais"

segunda-feira, novembro 08, 2004

Esplanando

Aqui mora um dos melhores artistas da lusa blogosfera. O Glória Facil também coincide na justiça do atributo. Faz falta quem tão bem mande pedras a telhados de vidro, principalmente quando estes são cobertos por tanta e tão generalizada cromice. Diz João Pedro George - who´s the man? - a propósito do défice crónico de não sei bem o que que constitui a obsessão do português por tudo o que seja alcançar recordes, ainda que a natureza dos recordes seja quase sempre cretina:

  • "Há uma coisa que sempre me intrigou nos portugueses: a obsessão em bater recordes. O português, como o imagino, é aquele gajo que gosta de comparar o tamanho das pilas. Que vive atormentado, angustiado, perante a ideia de existir outro gajo que não só é capaz de mijar mais longe, como ainda por cima projecta o esguicho a maior altura, fazendo-o passar por cima de uma camioneta de dois andares. Os portugueses não convivem bem com o facto de existir um maduro qualquer no outro lado do planeta capaz de puxar um comboio com a barba ou que possua a maior colecção de bilhetes de autocarro usados. Ficam deprimidos. (...)"
A leitura completa do texto de JPG recomenda-se. Se não for mais nada porque, ao que parece, ontem, ali para os lados de Santarém um novo recorde foi quebrado: o da maior salada de fruta do mundo. A moral da história, para além da futilidade do óbvio, é que a fruta era toda portuguesa.

domingo, novembro 07, 2004

O Deus das Coisas Paradas

Pareceu-me mole farto da última vez que o vi do outro lado do espelho. Tinha o rosto escanhoado, as faces limpas e enxutas, mas nem por isso se lhe sumira das órbitas o olhar anímico e nevoento, como que ensombrombado por uma mácula no tempo, por uma sombra ou uma noite eterna que ali encalhara.
Nos melhores dias subia os caminhos da serra e traçava nos domínios do céu territórios imaginários, fazia das nuvens fortalezas e galeras, cumes inexpugnáveis e fábricas pardas e passava as horas arregimentando exércitos de gotas, gotinhas e gotículas de chuva ou ameestrando os parcos raios do sol de Inverno.
Escanhoado, talvez aquele fosse um dos melhores dias. O habitual nele era esquecer-se de si, deixar a carne embrutecer, passar os dias ocupado até que a dúvida o fazia julgar que ele era também uma partícula íntima do escuro da noite, uma fraga mais no leito do rio. Nesses dias, sentava-se no ultimo degrau da escada e esperava imerso num transe imperturbável por uma resposta que fosse na caixa do correio. Não era raro a noite vir e estender-se sobre as casas com ele ali petrificado, nem um resvalo da íris dentro da órbita, nem a flexão mínima de um músculo. Estava como se houvera morrido ou como se ali não estivesse senão o seu eu invólucro e ele se encontrasse ou desencontrasse algures entre duas folgadas de vento.
Quando era ganapo e se aborrecia ora com o bang bang dos ponteiros, ora com o insosso do gestos dos crescidos brincava desta maneira, ora vendo e revendo as coisas de novo, ora com os óculos da primeira vez, ora com os óculos de abraçar as coisas paradas. Foi assim que se apercebeu que o dedo grande do pé de Dona Caulliflower Guevara era mais pequeno que todos os outros, uma espécie de menos que mindinho responsável pela forma têmpera e fogosa como a senhora se bamboleava e pelos desvarios dai decorrentes em que a fatia máscula da cidade se afundava sempre que o trânsito era o de Dona Flower Guevara.
Assim também se apercebeu do rubor afrontado da viúva Quitas Perozo quando comungava das mãos do prior e do mal de coceira que tirava do sério, nas esquinas das avenidas, o memorável doutor Yatchboat Ortega, velho da idade do século a quem a putaria agradava tanto quanto as gomas e os rebuçados agradam às crianças.
Olhando com os óculos de ver as coisas paradas, o que mais o espantava eram os vértices que desconhecia nas coisas que sempre conhecera: as flores brancas do azevinho escondidas no fim do Outono, os afagos suaves que o pai roubava à cintura da mãe enquanto a louça se lavava, os caracóis que vinham no preâmbulo à madrugada descoroçoar as calêndulas da vizinha, o musgo nos pinheiros apontando o norte, a passagem dos meteoros e o silêncio das cigarras quando eles passam.
Quando era ganapo, muito mais mundo existia mas do alto da sua tristeza, do outro lado do espelho, nada disso ele parece recordar. Há nos seus olhos uma noite eterna encalhada.

sábado, novembro 06, 2004

As minhas ilusões

"Hora sagrada dum entardecer
De Outono, à beira-mar, cor de safira,
Soa no ar uma invisível lira ...
O sol é um doente a enlanguescer ...

A vaga estende os braços a suster,
Numa dor de revolta cheia de ira,
A doirada cabeça que delira
Num último suspiro, a estremecer!

O sol morreu ... e veste luto o mar ...
E eu vejo a urna de oiro, a balouçar,
À flor das ondas, num lençol de espuma.

As minhas Ilusões, doce tesoiro,
Também as vi levar em urna de oiro,

No mar da Vida, assim ... uma por uma"

Florebela Espanca, Livro de Mágoas

Regressões

No fim do século XIX ditaram a morte de Deus e o esvaimento do filão da ciência. Eram tantas as maravilhas e as possibilidades, que tudo parecia engendrado em definitivo, que nada mais parecia prolongar o Homem e perdurar para além do seu imaginário racional. Como o Homem se suplanta na amplitude do que é a manifestação de si mesmo enquanto ser pensante, o falso anúncio do fim dos tempos melindrou e novas manifestações do génio e do espírito humano explodiram na ciência e na técnica, na arte e na política, porque o Homem, soerguendo os impulsos da sobrevivência, recriou-se para além de si mesmo.
A arte como recriação do real foi invertendo a lógica com que o próprio real é entendido e inaugura como que a era do pensamento pós-científico, acabando mesmo por permear o divórcio com noções anteriormente entendidas como essenciais para o conformar da própria fenomenologia artística. Divorciou-se da estética, divorciou-se da lógica, divorciou-se da materialidade objectiva. Abriu, dizem os transeuntes na sua existência, as portas da possibilidade de se repensar o pensamento.
Evoluiu pela desobstrução daquilo que no Homem sempre foi epifania e palpabilidade para aquilo que na história da ontologia humana é a essência: o caos. Da imagem transmudou-se em ícone e de ícone expandiu horizontes até a uma amplitude do ser que é ontológico e gnosiológica no mesmo instante e no mesmo horizonte: a presença suprema, a extensão máxima, a compreensão mínima.
De feição construtivista, a essência da arte migrou da figura para o esboço, do esboço para o traço e do traço para a folha branca e desta para a leitura divinatória, telepática. O mesmo será dizer que evoluiu da constrição figurativa para o abstracto total, não só o abstracto técnico, mas o abstracto nihilista, da orquestração apolínea para o pulsar dionisíaco e é arte hoje a abordagem extemporânea do real, de forma que o quotidiano combinado com o absurdo são toda e qualquer manifestação onde a arte persiste. Insossa, sem estética, caótica, inviável, a arte hoje catalisa já o caos universal, esgotadas que estão as possibilidades de concretização do Homem.
A arte total, como ausência em si mesma, está a um passo de distância. Um dia virá, pois, em que a arte será a barbárie e a barbárie será a morte.

sexta-feira, novembro 05, 2004

Regressos

O esplendor da terra, o cinzento do granito envelhecido, o silêncio dos ventos e das nuvens, o verde antigo dos pinheiros, a ausência dos pássaros e dos grilos, o peso da memória.
Ao longe, em serras anónimas que se vão recortando até ao limite do horizonte, serpenteiam como rios negros algumas estradas mínimas e algumas cintilâncias fazem pressentir para além de uma débil cortina nevoenta a existência de aldeias nucleares no amuralhado de montanhas que se alargam para além do que a vista alcança. Aldeias que eram como constelações outrora. Um manual de navegação à prova de falácia e erro, um relógio ou bússola que indicavam a Estrela ou o Caramulo com a mesma infalibilidade com que os cirros acastelados apontam a proximidade da tempestade.
Hoje, contudo, não há uma réstia de nuvens no firmamento: pálido, o sol novembresce como se fora a estrela dos dias grandes da estação, das tardes longas de Junho.
O regresso às vertentes ácidas, às estradas de poeira joeirada que se estendem como uma espinha dorsal ao longo de todo este monte é um regresso às vertentes do ser, às tardes soberbas da infância em que estes montes não eram só montes, eram o mundo também.

quinta-feira, novembro 04, 2004

A Dúvida

"O único mistério do Universo é o mais e não o menos.
Percebemos demais as cousas - eis o erro, a dúvida.
O que existe transcende para mim o que julgo que existe.
A Realidade é apenas real e não pensada."

Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos

quarta-feira, novembro 03, 2004

Tudo igual...

No país da rainha de copas nada mudou: o pateta continua rei.

terça-feira, novembro 02, 2004

As Bacantes

Um diálogo à distância e os despojos do dia, ténues, morrendo muito além da linha do horizonte, num mar de prata embebido em luar, assim se faz Setembro nas Aldeias da Banda d’ Além.
Setembro é o mês da mão de deus. A paragem abençoada no adeus ás noites longas, uma fogueira serenando a madrugada e a paz no coração dos homens, no rescaldo das desfolhadas. Rostos disformes, estes, pintados pela penumbra das labaredas que dançam na fogueira.As mulheres, que não têm o coração fundo e fingem compreender o mistério da lua, sentam-se a um canto e entretêm-se com frivolidades, gabam os maridos e os filhos e esquecem que só a lua, na trégua de Setembro, como a Iemanjá dos saveiros, é mulher e mãe. Só a lua é o milho desfolhado, milho alimentado a suor, é a fogueira, uma outra lua pequenina, com um luar pequenino entristecendo os homens.; só a lua é mulher e mãe, enchendo de paz a languidez da noite.
Uma garrafa de aguardente, empalhada a vime, passa de mão em mão, de boca em boca, e sossega no regaço do contador de histórias: não aportará a outras bocas sem que a história acabe.O contador de histórias tem ainda sobre as costas a manta do feitio do arco-íris com a qual incorporou o Serandeiro. O Serandeiro, a sua história das mais tristes que se possam ouvir, é presença certa nas noites de Setembro: aparece por entre uma raleira de luar, quando a lua se distrai, a meio das desfolhadas (assusta as crianças pequenas, com as pálpebras inchadas de sono) e procura nas presentes, uma Bacante, que lhe retire com um sorriso a rustição, o fado triste de ter que perseguir a lua, mulher e mãe, destroçando os milheirais, nas noites de Sabbat, nas noite em que as Bacantes se reúnem para dançar e amar.Do Serandeiro, já há muito, nada se ouve. Aparecem Serandeiros de enganar, como o contador de histórias, escondidos sobre mantos de lã do feitio do arco-íris com o propósito de lembrar o outro, o que destroça os milheirais por maldição. O que tendo encontrado as Bacantes dançando, os seios rosados e o corpo nu, orvalhado, reflectindo o calor da fogueira, a elas se juntou e as amou a todas, perdendo para sempre a alma, o sossego e o coração, na noite de todos os equívocos: o de estar no sítio errado, no momento errado e o desejo errado de beber loucura nos lábios das Bacantes, no corpo molhado sob as luas cheias de Julho.
O contador de histórias é um livro sem fim. Entre um trago de aguardente confessa que as Bacantes lhe vêm bater à porta. As mulheres, que não têm o coração fundo, sossegam a voz e guiam para o contador de histórias, os olhos alvoraçados. O contador de histórias, que não quer destroçar os milheirais às gentes que trabalham, não lhes abre a porta, nem lhes quebra o segredo, espalhando-o aos quatro ventos, porque as Bacantes, não sendo mulheres nem mães, como a lua da mão de Deus, também têm poder: o da loucura sobre os homens.
O contador de histórias é um rosário sem fim. Não conta só histórias. Cara magra, cerzida por muita desventura, muito sol, muito dias iluminando-lhe os olhos icterícios. Se a alguém a lua, mulher e mãe, castigasse com um mal de amor, um "cabranto", um tesorelho, uma varicela até, o contador de histórias, que conhecia todas as curvas ao corpo da mulher e mãe de todas as coisas e lhe lia no luar, como quem lê nos olhos de uma mulher a ansiedade e o desejo, murmurando uma arte antiga que lhe viera do pai, do avô, do princípio dos tempos, afasta o mal em ritual estranho onde se misturam o respeito e a crença.Eu próprio, era o contador de histórias quase tão velho como o século, enforquei um quebranto (o contador de histórias murmurando baixinho palavras de outros tempos) numa carvalha cerquinha, às primeiras horas da manhã, o sol irrompendo, coroando as copas das árvores com uma luz baça.
Porque o inverno da vida não perdoa, o contador de histórias deixou a Banda d’Além e agora conta histórias, por certo, à lua, mulher e mãe, segredando-as baixinho como quem reza. Talvez o seu sussurro seja o vento fraco que o luar do mês da mão de Deus traz pela mão.Foi numa noite de Janeiro que o livro sem fim do contador de histórias se fechou, que as contas do rosário do contador de histórias se despedaçaram em memórias baças que cada um guarda das noites de lua cheia do mês da mão de Deus, em que os homens de coração aberto bebiam aguardente junto ás fogueiras e ouviam histórias extintas, porque existiam só no sangue e no saber do contador de histórias.Morreu o contador de histórias. Como se diz nas planícies incautas de África sempre que um contador de histórias se junta à lua, mulher e mãe, ardeu uma biblioteca. Têm as Bacantes o descanso merecido, sem portas mais onde possam bater.