domingo, outubro 31, 2004

Hobbits

A propósito de uma outra humanidade e ainda numa ilha, os "hobbits" das Flores (Indonésia). Como já existe uma igreja maradoniana, não seria de admirar se perdurasse por esse mundo fora todo um universo de seguidores de Tolkien que se preparam para santificar os restos dos hominídeos agora descobertos no arquipélago indonésio como sendo os despojos efectivos dos personagens da saga tolkeniana.
O melhor da "estória" é que ela é mesmo fantástica e reescreve a história tal como a supomos conhecer: individuos de um metro que caçavam elefantes pigmeus, com um cérebro quatro vezes mais pequeno que o nosso. Quem havia de dizer?

sábado, outubro 30, 2004

A Natureza e o Mal

Vista do céu a ilha é um nada, uma concha no meio da espuma, o topo de uma montanha que explode em silêncio onde existe só água e sal por milhas e milhas, um iceberg verde e mínimo que se esqueceu de como se navega, tal como os seus homens se esqueceram da moral e da lei dos outros homens. Ou será que não existe tal coisa quanto uma moral universal?
Nas páginas de um livro, Pitcairn é uma aventura fantasiosa, um conto de piratas extraviados, de motins. Uma ilha hollywoodesca de certa forma. Uma ilha impossível, de uma outra. É que nas páginas de um livro, Pitcairn poderia ser também a ilha improvável de "O Deus das Moscas", de William Golding, o laboratório que se julgava hipotético onde a selvajaria brutal se revela plenipotencialmente, muito para além de qualquer noção de moral ou mesmo de humanidade. Longe de tudo, num mundo que se constroi cada vez mais a partir da ideia da proximidade e da homogeneização dos pareceres e dos costumes, Pitcairn é um enclave da humanidade onde a maldade humana persiste naturalmente. E persiste não como um desvio ou uma patologia, mas como regra ou mandamento, lembrando-nos do ténue que é a relação entre o homem e a sua própria natureza. Só sob este prisma podem ser equacionadas as ocorrências de Pitcairn. Seis condenados - um oitavo da população da ilha - asseveram do desfecho de um processo que é em muito um desfecho parcial do que poderia ter sido uma outra humanidade.

sexta-feira, outubro 29, 2004

Mar de Inverno (2)

Quem ama o mar, abraça a morte. Anteontem as vagas assombravam, deslumbravam, agarravam. Tanto que o rugir assanhado do mar parecia melódico no caos, fascinante na ira, como se as sereias de Ulisses soltassem nele canções vespertinas e silentes que adormecem e arrebanham, que amarram e mortificam.
Para um pescador o mar é o mar, não há cá lugar para metáforas. É o pão para a boca e a mortalha no caixão. Anteontem as vagas assombravam, deslumbravam e agarravam. Enlutavam. E enlutaram.
(Ainda na Figueira, de novo frente ao mar)

O Caos

Leio Prigogine. O bom e o mau, o belo e o apocalíptico têm um denominador comum: o caos. Tudo se estrutura a partir do caos.

quinta-feira, outubro 28, 2004

Mar de Inverno

Vejam-me só as cabras das gaivotas!
Varinas,
garotas,
cavalgando o abano
das ondas invictas do largo oceano...

As ondas morrentes, arraiais de espuma,
o sol que nivela
o sal que é bruma
e o Inverno inferno
que as cristas apruma,
até que as gaivotas,
não sobra nenhuma...

E os homens, os barcos,
botes à distância,
se tornam tão parcos
como a luz de Inverno
em vã transumância,
em peregrinação
no cruel das tuas vagas
Mar Cão, oh Mar Cão!

(Figueira da Foz, ao fim da tarde)

quarta-feira, outubro 27, 2004

De quem eu gosto

Gosto. Não gosto. Gosto da subtileza das palavras quando se combinam em equações absurdas e suspeitas, quando alguém se aventura a fundir num verso o gelo e o deserto, quando nos levam, as palavras, a onde os olhos não podem, não conseguem, onde os odores e os perfumes se submetem, onde os sentidos amortecem e mesmo o mundo se esquece de si próprio. Gosto das florestas improváveis de árvores infinitas, gosto de me sentir senhor do anel dos teus braços, gosto destas imagens, que são só fileiras de palavras ou palavras enfileiradas e no entanto são tanto e são tudo, o teu cabelo bailando com a maresia ou suspensa de um raio na terna mansidão da manhã despontando. Gosto da brisa soprando e desgosto de quem a tenha por vento fraco. Desgosto de quem desgosta das palavras, de quem não as usa, de quem delas abusa, de quem as maltrata, de quem as mata e muito mais que tudo, gosto de como te amam, as minhas palavras. E de como não te conseguem amar, de como procuram a chave de todas as equações para que não pareçam sempre pequeninas e inócuas por não abarcarem o tudo que és, que me dás e me fazes querer ser...

segunda-feira, outubro 25, 2004

No coração do pulsar


Não está nos escaparates das livrarias e suspeito que quando vier a público lhe seja dado um destaque tão marginal que a própria obra há-de passar incógnita por entre outras e demais incógnitas páginas (e por isso, se calhar, mais válidas). Não é, contudo, por isso que “Para um Novo Paradigma do Saber e do Ser!", de Manuel Sérgio, merece ser lido com atenção.
Numa obra sincrética, quase opúscular, o autor faz a apologia da acção e da vontade enquanto factores anímicos mas essenciais na caracterização do individuo enquanto ser, tendo por base a maturação epistemológica da própria noção de movimento e de motricidade humana (disciplina da qual Manuel Sérgio é, aliás, docente).
Numa obra que perfaz também uma abordagem ontológica à própria intimação da filosofia e do pensamento científico, à conformação que ambos conceberam para o destino do Homem, Sérgio propõe o agir como prolegómeno ao próprio ser.
Se em Descartes, pensar é existir, Sérgio (apoiado na obra e no pensamento de autores tão dissemelhantes quanto Santo Agostinho, Marx ou Ilya Prigogine) concebe o ser como agir: um agir que penetra o reduto da complexidade e que suplanta qualquer definição de conhecimento (qualquer que seja a sua índole) enquanto solução final.
Se a apologia em si mesma conforma uma abordagem pertinentemente positivista da acção e da motricidade humana como reduto de concretização ou de supra concretização do individuo para além daquilo que o individuo organicamente é, o pensamento de Sérgio – sem constituir uma inovação pragmática – tem o ónus de dissimular sob o anátema da evolução filosófica, uma crítica social que não deixa de ser adequada ao presente estado de encoberta estagnação dos valores que é apanágio da modernidade ou da moderna humanidade e em que o paradigma de Manuel Sérgio bem que se poderia resumir a um repto necessário: ser é sempre suceder (se), ser é sempre superar-se.
Nas livrarias dentro de algum tempo, “Para um Novo Paradigma do Saber e do Ser!”, de Manuel Sérgio tem a chancela da Ariadne Editora (Coimbra).

A Ler: Sérgio, Manuel, “Para um Novo Paradigma do Saber e do Ser!”, Ariadne Editora, Coimbra, 2004;

Nande e a Peste

Algumas manhãs de terça-feira em Coimbra foram assim. As Monumentais vencidas a custo, a passo trôpego, de corrida e de cansaço, um café puxado para limpar dos olhos o que ainda sobrava da noite, uma nata engolida num sopro e a última página da "Cabra", aquela coluna puxada a uma banda, muito mais que uma coluna vertebral para um jornal que nunca foi o melhor jornal como Coimbra não foi nunca também o melhor dos mundos. Por aquele recanto de jornal havia quem esperasse quinze dias a fio, com o fervor de que se fazem as paixões. Uma colega quis saber mesmo porque amores seria o autor movido.
"A Curva da Estrada", assim se chamava a crónica e a assinatura que todas as quinzenas a tornava válida era a de Jorge Vaz Nande. Dele é também este recanto da blogosfera, infelizmente mais tímido que a "Curva" e mais sintético que o próprio Nande. Ainda assim a visitar. Pode ser que a estrada volte a encurvar.


Hamburgo, Hummel Man nº 11

sábado, outubro 23, 2004

Coimbra, a turbulenta

Sobre Coimbra se escreveu o ano passado no Papaia Express em termos que tentavam vislumbrar Coimbra tal como ela sempre se afirmou, uma cidade vitruviana nos defeitos e nas qualidades, mas quase sempre vanguardista na forma como a mudança social é encarada.
O post "História Breve da Contestação - Da Insensatez à Ignomínia" veio a público o ano passado como uma espécie de resposta a um editorial de José Manuel Fernandes em que o director do "Público", à imagem de uma facção maioritária dos media pundits (onde alinham por exemplo Francisco José Viegas e Pacheco Pereira)que fazem valer influências no panorama político nacional, procurou minimizar a contestação dos estudantes de Coimbra ora determinando-a como uma herança residual de outras contestações, ora resumindo-a ao fervor revolucionário típico da juventude. Assim se escreveu pois no ano passado,

"A história das providências cautelares de Coimbra e do fecho da Porta Férrea e da contestação insensata e insalúbre dos estudantes não pode ser contada, como se tem visto por aí, com a ligeireza e a linearidade com que se contam os contos de fadas e de pós de perlimpimpim, nem sequer com a desenvoltura redimissionista com que estamos habituados a olhar para o passado, procurando nos feitos menos maus de ontem alguma glória para o caos de hoje. Em palavras menos corridas, a história não pode nem deve acreditar o que corre como sendo, à luz do que transcorreu, ou bom ou mau ou glorioso ou heróico. É sempre, e definitivamente, diferente.Com Coimbra e com a Universidade de Coimbra e com a convulsão ocasional que meia volta afecta a parte alta da cidade o mesmo acontece. O facto de tal acontecer não deve, no entanto, servir de pretexto para que os dias agitados de uma cidade que todos se habituaram a conhecer sob o epíteto de "cidade dos estudantes" sejam contados como se fossem exageros ou problemas de uma geração amimalhada, desprovida de sentido - quer de ocasião, quer das prioridades.O encerramento da Reitoria não é um "fait divers" que se possa contar ao país nos trâmites em que os Grimm ou Hans Christian Anderson narravam os idílios da infância, " Era uma vez meia dúzia de estudantes bebâdos e mal-ajeitados que não tinham mais que fazer e protestavam contra tudo e contra todos", correndo-se o risco de, isso acontecendo, maior ser a probabilidade de ocorrer o que já agora ocorre, que é exorcizar os problemas e as prioridades (verdadeiras) do país, simplesmente ignorando-as.Lógica ou ilógicamente, sou dos que partem do príncipio que todos os tratados de paz têm um não sei quê de dispensável e de inóquo: a razão primeira pela qual são assinados. A guerra.A analogia é similar no que concerne à contestação e ao protesto. A sociedade democrática ainda não é suficientemente hipócrita para iludir a natureza das manifestações: os manifestantes e a discórdia não existem por si só ou por nada, existem como sintomas da gravidade ou da inaceitabilidade de certas situações.No caso de Coimbra, é muito pouco silogístico deduzir que por trás do descontentamento dos estudantes está muito mimo, muita bolacha maria, muito smirnoff ice e pouca responsabilidade. Os problemas existem em Coimbra como decerto deverão existir noutros lados. A forma como a Academia de Coimbra lida com eles ou tenta chamar atenção para que existem está longe de ser a mais adequada: chega a ser pueril e profundamente situacionista, de um situacionismo que mais que abrir portas e expandir horizontes, encrava engrenagens e circunscreve esforços. A redenção da memória das lutas de 1969 e a sua utilização como bandeira e até como motivo alegórico sempre que nos corredores escuros da Associação Académica de Coimbra se mitigam manifestações e se professam debilidades não é o estandarte que as capas negras da mais velha academia do país julgam ser: é, pelo contrário, um empecilho, visto pela opinião pública e por aqueles que viveram sob os auspícios do Estado Novo como uma ofensa, até como um excesso de liberdade.Seja ou não, é uma forma de luta regressiva e como tal está debilitada desde a raiz. Não quer isto dizer que os propósitos que a luta esconde sejam também regressivos e pouco válidos:o protesto que agora se faz contra o aumento de propinas é também um grito de alerta dado por uma Universidade que vai morrendo aos poucos, que sufoca na sua própria história e no pútrido peso do prestígio que um dia conservou. De uma Universidade onde os espaços rarificam e onde as condições se detrioram com o ligeiro soçobrar do tempo. Quem por lá dispendeu alguns dos seus anos poderá atestar das salas de aulas de Direito a transbordar de alunos, dos espaços de valor histórico comprovado - casos do Laboratório Chímico ou do Jardim Botânico - votados a um abandono imerecido ou dos casos de reaproveitamento forçado e quase caricato dos espaços, como o que sucede com o que era até meados da década de 80 os Hospitais Velhos da Universidade/ Colégio de S. Jerónimo. Este último aproveitado com tal eficiência e constância que até a antiga morgue serve para patíbulo do saber.Não é um post de protesto, este post. É antes um post quase ritual que tem por base uma viagem breve aos círculos da memória. Poderei entende-lo, pessoalmente como uma dívida de mim para mim, um exorcizar de certos fantasmas e de maiores tristezas, como essas que nascem do fundamentalismo com que se olham para as coisas e com que a imprensa parece acolher e sintetizar o presente. E é um convite a José Manuel Fernandes e outros que tais para que venham até Coimbra e se dignem a ter uma aula de Jornalismo (um dos cursos que por lá se ensinam) na antiga morgue do velho Hospital. Há quem diga que ainda por lá se sente o cheiro dos cadáveres. Eu digo que é o odor de Portugal."

Um ano depois, com um motivo que permanece e um contexto que se agrava (sem que se fale desta feita de providências cautelares. Para que as palavras quando se pode ter em seu lugar acção e gás pimenta?) fala-se de Coimbra como que entredentes e mesmo os ministros, esse D. Sanches quando fala com os jornalistas fala com o troço de um sorriso trocista a aflorar-se-lhe na bestia face como se tudo o que os telejornais mostraram nada mais tenha sido que uma encenação de marionetas e robertos e em parte talvez se sintam assim muitos portugueses, como se tivessem um braço enfiado pelo cu acima, um governo todo de fachada que se esgueira e entorpece mas isso só diz respeito a Coimbra porque foi em Coimbra e contra os estudantes que o governo se mostrou rafeiro enraivecido e arreganhou os dentes com uma sobranceria que assusta. E como os estudantes foram a "carne para canhão" perfeita ninguém parece olhar a carga da polícia como um problema. Enfim.
O que importa vislumbrar para além das imagens é, se afinal, os estudantes da mais velha universidade do país têm ou não razões válidas para invadir uma reunião do Senado e para manifestarem tanto repúdio a uma decisão do governo.
Julgar o acréscimo das propinas por si mesmo talvez não justifique o protesto inflamado dos estudantes. Afinal, e esse é o grande argumento de personagens como Francisco José Viegas, quem tem dinheiro para pagar umas tantas noites de finos numa das discotecas da cidade, terá também para pagar o valor de uma propina, seja esta ou mais ou menos elevada, até porque existem estudantes que fazem bandeira da irresponsabilização, para quem a universidade é mesmo copos e vinho verde. Mas esses, estou certo, se não aparecem nas aulas, também não aparecem nas manifestações.
O fulcral da questão é que o acréscimo das propinas não pode ser julgado apenas por si próprio. A sociedade não é uma estrutura atomizada e as medidas tomadas num domínio reflectem-se necessariamente no outro. E aqui reside algo essencial: será que o aumento das propinas corresponde na prática a um ensino com melhor qualidade? E de que forma é que este aumento de propinas poderá corresponder a um investimento seguro para o futuro de quem paga a dita prestação? Quem poderá garantir (numa altura em que os recém-licenciados, ao invés de serem considerados mais valias são considerados produtos marginais) que o ensino superior é ainda uma aposta válida em Portugal? Quem souber que responda. Sem demagogia.

sexta-feira, outubro 22, 2004

O Bigodinho do Ditador

Vejam se vêm. Na parede de concreto, quase a um canto há uma luz que a humidade engasga. Sentado à mesa, no meio da sala diminuta, o ditador brande uma lâmina. As mãos abanam-lhe e derrubam por várias vezes o espelho que tem à frente. Das outras salas chega a escuridão, a luz que se ausenta. Á superfície, o tonitruar dos disparos e das bombas cresce com a celeridade com que cresce a trovoada. Na sua sala o ditador escuta com os sentidos todos o apocalipse sobre a cidade, o juízo que se abate sobre si próprio. A pele crispa-se-lhe, os olhos sucumbem à penumbra e o ditador chega a lâmina à abside da pele e devasta, as mãos trementes, algo que o acompanhara desde que a grande aventura começara, a raiz da obstinação. Ao seu lado, o corpo da Braun auto-encardido, a luz que funde e refunde, a lâmina que varre a pele, agora nada mais importa, pensa o ditador, e o bigodinho desaparece e quando o bigodinho desaparece a luz funde para não refundir mais e o escuro invade tudo, os corpos e a lâmina, a mesa e os cantos. Quando Chamberlain e Daladier entregaram os Sudetas, o ditador viu como se atapetava a amplitude do seu destino e que este seria vasto em todas as coisas porque com os Sudetas, Daladier e Chamberlain entregaram também o direito e o beneplácito dos povos.
Quando o ditador cortou o bigode, novos ditadores nasceram, mais perigosos. Perigosos porque não têm bigode, nem Chamberlain. Melhor. São o ditador, Daladier e Chamberlain. Eles e nós. Agora que temos censura, repressão policial, que mais justifica o beneplácito?


Hamburgo, Men in Motion

quinta-feira, outubro 21, 2004

O melhor de se começar de novo

Um dos meus bons amigos, de café, de coração e tudo, chegou certo fim de tarde com a conversa imensa de que precisava de começar de novo. Abraçou-me (uma pancada seca nas costas) e despediu-se com o jeito estranho dos personagens de Hollywood quando sabem que vão morrer. Aquele segundo de brio e azedume que costuma arrancar muita e boa lágrima ao espectador, não o repetiu o meu amigo. Disse, com os olhos secos: "O mundo não pode ser assim tão grande que não nos voltemos a ver em algum lado", respirou fundo e saiu com uma celeridade inusitada pela porta por onde tinha entrado.
Sobre um existencialismo tão específico não me ocorre que Sartre algum dia possa ter escrito algo. Sartre era mais indíviduo para escrever sobre a existência enquanto naúsea e inquietude. Amargura talvez. Ou impossibilidade. Era bom, pois, que alguém se lembrasse de tentar explicar porque razão as pessoas cismam em remediar a existência com a ideia absurda de se começar de novo, como se se pudessem gravar e regravar existências, rasurar erros de percurso ou reconquistar qualidades, repetindo uma e outra vez a marcha e o pulso dos dias, até porque esse é o fado e o pregão que mais se repete nas passagens de ano, as passadas e todas aquelas que estão para vir.
Pregão incipiente porque ninguém terá o condão de se recriar, de se confiar com a confiança a abraçar a plenitude que a partir deste segundo, deste minuto, deste raiar e deste escurecer passarei a ser tudo aquilo que até hoje não consegui ser ou tudo aquilo que, melhor dito, nunca fui.
O meu amigo, por exemplo, vinha dizendo que precisava de nascer de novo, de saber de novo o que é um útero, de se agarrar promogénitamente ao mundo através de um novo cordão umbilical, que precisava de navegar por uma placenta dourada em que a voragem dos dias pudesse ser também a voragem das coisas novas, como que vistas pela primeira vez. Depois de se ter despedido, faltaram por três meses notícias dele e quando chegaram, num fim de tarde de Verão, vinham embaladas num timbre grave e sólido, senão mesmo solitário. Era agora jardineiro nas margens do Lago Maggiore: era seu o rumorejar das águas calmas do lago e a brevidade do orvalho sobre as rosas, mas nascer de novo (foram estas as palavras dele) roubou-lhe tanta coisa que percebera que se morre sempre no exacto segundo em que se nasce.
Este "Prestes João" que agora nasce poderá ter desaparecido neste exacto segundo, porque nenhum nascimento é um verdadeiro nascimento: é sempre uma retoma, uma transferência e uma herança, um legado genético e sanguíneo. No caso, o "Prestes João", sem constituir uma sequela daquilo que foi durante quase um ano e meio o "Papaia Express", recupera-o na indignação, na voracidade, na polivalência e quem sabe mesmo, nos conteúdos que um dia por ele se redimiram.
Eis a melhor forma de se começar de novo. Com a consciência plena do caminho que se deixou para trás.


Haarburg, Começar de Novo