terça-feira, dezembro 28, 2004

Um Natal fedorento

Uma das coisas pela qual ainda deo gratias neste país é isto não ser ainda tão miserável que se faça uso de apedrejamentos e lapidações e processos que tais para meter nos eixos os insurrectos, os questionadores do sistema, os filósofos ou os gajos que, como eu, não reverenciam e idolatram lá por adiante o gato malcheiroso que, neste Natal, conformou, ao que parece, o produto cultural mais vendido (e oferecido possivelmente.)
Se assim não fosse, coitado de mim em plena praça pública, amarrado a um pelourinho de inox com metade de Portugal em fila indiana, de calhauzinho na mão, a fazer desfasada piscaria, meio olho aberto, meio olho fechado, a pedra a apontar para a cabeça e a bater no substrato da descendência e a riscar dos planos astrais o desígnio da continuação do brasão familiar e o juiz também, com o seu quinhão de calçada portuguesa na mão enluvada a cortar passagem,
- Você não vê que eles falam, falam, falam, falam e não fazem nada..
e faz voar a pedra da justiça também que isto de não seguir os fenómenos da moda em Portugal é coisa grave.
Se assim é, culpado sou. Não roubo o mérito do trabalho à trupe felina mas não me parece que sejam os arcanjos da nova comédia à portuguesa. O que tenho escutado e visto deixou-me mesmo a vaguear com dúbias considerações sobre que tipo de defeito genético poderia sofrer para não ver nos rapazes fedorentos mais do que bom trabalho feito. Duas noites mal dormi a tentar encontrar códigos de humor requintados naquilo do "tem que preencher o papel - qual papel - o papel- qual papel" e amargurei o sono por não ter descoberto nada senão o requinte do absurdo e a tenacidade da crítica à burocracia. Nisso são bons, os moços. Melhores do que a contar piadas.
Depois situei-me na posição egoísta em que nos consideramos iluminados e cem por cento certos e elucidados e embora tudo isto sejam pífias à João Pereira Coutinho, uma coisa deu para esclarecer: os gajos não são originais em termos absolutos. Podem ser originais até. Mas relativamente falando, quando comparados com a pirosa piroquice da televisão, com os Batanetes do Riso ou os Tonecas Maré Alta ou os Rochas e os Hórácios. E nesse caso, verdade seja dita, a coisa não é dificil.

domingo, dezembro 26, 2004

A dor mínima portuguesa

1. Sobre o maremoto no Sudeste asiático, ouvi hoje um padre ressuscitar o discurso da majestade divina, da justiça de Deus, da destruição das novas Sodomas e Gomorras da luxúria humana pela água e pelo fogo.
Faltou o padre exclamar com voz tonitruante "arrependei-vos ò pecadores" para que a memória macabra do caldeirão eterno - tão mitigada nos ideários infantis de uma vasta maioria dos portugueses - se recompusesse até ao esplendor de outros tempos. Ainda assim, no fim da celebração não faltava já quem falasse no fim dos tempos, nos sinais dos mundos que se findam.
2. Nas lides jornalisticas são habituais pesos e medidas diferentes para ocorrências semelhantes. Por motivos que não deixam de ser um tanto ou quanto mesquinhos, a morte tal como é concebida pelos meios de comunicação social, está na origem de uma certa sideração do conceito por castas de índole mediática, como se esta tivesse junto de uns e de outros diferente relevância. Assim se explica porque é que a morte de um político ou de um desportista merecem destaque de primeira página e a morte de um operário passa incólumes vezes ignota; ou que a morte de seis pessoas em Bragança num acidente de viação tenha na quadratura sócio-económica dos media uma importância específica maior que a morte de quatro dezenas de individuos num acidente de aviação em África. Nos finais do século XIX, no Bairro Alto dos jornais e das prostitutas, o vulgo entre os companheiros de mester era pesar a vida nestas proporções: a um mendigo morto em Lisboa, equivaliam três mineiros asturianos soterrados ou seis operários da Silésia esmagados ou sessenta agricultores russos que sucumbiram à fome ou cento e vinte pescadores indianos ou então todos aqueles que a onda gigante de Sumatra puxou, na madrugada de Lisboa pelo mar adentro.
3. Sempre que uma ocorrência do género surpreende, a tendência dos media portugueses é a de acrescentar à tragédia o seu pequeno quinhão de portugalidade, a dor mínima dos portugueses. O Primeiro Jornal da SIC teve, por exemplo em directo via telefónica, o testemunho de um certo José Mouzinho, turista português em Phuket e a TSF uma outra portuguesa, emigrada em Macau, que terá "visto tudo" a partir de um barco navegando ao largo.
O pequeno quinhão de portugalidade serve assim, não apenas para delimitar com maior rigor os contornos da ocorrência, mas sobretudo para lhe conferir alguma proximidade, como se o que contasse no meio do caos, da morte e dos destroços, fosse apenas a dor máxima dos portugueses em férias. Tudo o mais nada nos diz. São numeros.
4. Num e noutro caso, seja sob a égide doutrinária da Igreja ou sob a influência temperamental dos media, a dimensão humana da ocorrência é puramente simbólica, de um simbolismo ideossincrático que nos tem sempre a "nós" como máximo denominador. "Nós" somos em alguns casos os pecadores, noutros casos os portugueses e, noutros casos ainda - sempre que se faz a perífrase do terrorismo - a civilização ocidental. A partir de "nós" se concebe também o ideário de uma "Humanidade" que, à luz das cartas e das cartilhas dos direitos humanos e do Homem nos abarca a "nós" e aos outros, asiáticos e africanos e outros que tais, mesmo que por eles não sintamos nem compaixão, nem comiseração, nem nada, apenas a reconfortante sensação de que "eles" (e tudo o que os afecta) vivem longe, demasiado longe.
Nesses termos, tanto o pároco como os meios de comunicação social desempenham, com a maior das eficácias, o papel simbólico a que parecem destinados. Um lembra-nos, com mais conforto que preocupação, que Deus lançou sobre "eles" a sua ira para que "nós" nos possamos emendar e precaver.
Os outros aligeiram a morte à ambigua insignificância dos números e tentam encontrar no travo amargo da tragédia um registo ligeiro de portugalidade para que tanta morte e tão forte devastação possam também ser nossas e significar outra coisa que não seja apenas indiferença silvando em imagens num ecrã vazio.

sexta-feira, dezembro 24, 2004

Litania a um Natal futuro

Numa casa, num qualquer Belém do mundo,
entre a neve estirada dos telhados,
entre humildes, pobres e abençoados
deixo-me levar pelo pensar ingénuo
de que tudo é Natal, tudo é feliz;
tudo são sorrisos flamejantes numa lareira,
tudo é da paz, ultima bandeira,
tudo é alma e choro de Jesus petiz...

Amansa-me o mel das rabanadas,
embala-me o vapor do bacalhau.

Nada é mal neste dia. Nada é mau.
São tudo beijos e contos de fadas.

Quando, nesta noite mágica
trincarem o peru
e se queixarem de que ele está cru,
engasguem-se e lembrem-se,
que por esse mundo fora,
tendo a lua e a vida embora,
há quem não tenha rabanadas,
nem prendas de fadas,
nem graças ligeiras,
nem o calor das lareiras.

Nem ninguém.

Mesmo em Portugal,
Há quem não tenha Natal.

segunda-feira, dezembro 20, 2004

Fabulário

Esta história que vos conto tem a idade dos séculos. Há muito, muito tempo, nos dias primogénitos em que os saberes estavam inscritos na luz do fim da tarde, corria um velho os caminhos do mundo. Seus, tinha um bordão e a memória de todas as suas horas.
Naqueles dias, imperava na Terra uma tal harmonia que nem nas ondas do mar existia fúria: tudo se desenvolvia na justa medida do equilíbrio, a chuva caia sem prejuízo, a agua corria sem preconceito, suave, quase indelével.
O velho tinha a idade dos embondeiros velhos e das pedras das catedrais. Vagou pelo mundo durante cem anos e conhecia de cor o frio das neves eternas, a textura das areias caldas do deserto, o frenesim dos pântanos. A sua memória era como uma nau de maravilhas que se abria a cada nova aldeia, a cada nova cidade, a cada nova criança na sua estrada.
No dia em que fez cem anos que corria mundo, o velho chegou à aldeia que era sua, de onde havia partido e decidiu abrandar o ritmo, talvez deixar de correr mundo, gastar as horas restantes transmitindo aos seus o que vira e o que vivera nas sete partidas do mundo.
Necessário não é dizer que a aldeia de pastores de onde partira não era a mesma aldeia de lojas, fabricas e automóveis onde chegava agora. O velho não entristeceu, pois é certo e sabido que o mundo e feito de mudança, até os músculos envelhecem e as flores murcham e as pedras se gastam.
Mas as pessoas também mudam. Quando se preparava para contar as crianças o que vira e o que vivera, três palavras saíram-lhe da boca antes da voz começar a enfraquecer, a sumir-se devagarinho, uma nascente que se extingue, uma torneira que se fecha.
Sem voz, os olhos do velho entristeceram, não tanto, ainda assim que se sumisse dele o alento. Ao segundo dia, querendo mostrar aos seus tudo o que vira, colocou às primeiras luzes da alvorada uma tela na praça central da aldeia, muniu-se de aguarelas e pincéis e decidiu pintar aquilo de que mais belo os seus olhos focaram nas suas andanças pelo mundo.
Traçou com um rasgo o contorno curvilíneo de uma aurora boreal, com outro a silhueta titânica das sequóias da Califórnia e quando moveu o braço para desenhar o esboço do que seria um oásis nas margens férteis do Nilo, foi como se sentisse os braços empedrescer, os ossos tornarem-se férreos. Todos os que ali estavam, nas primeiras luzes da manhã, viram o pincel escapar por entre os dedos do velho e cair. Muitos baixaram a cabeça e voltaram costas. Outros riram, troçando da farroupice do velho, comentando que a idade não perdoa, que há muito mais para fazer do que perder tempo com as sandices de um velho.
Triste, o velho subiu as vertentes ácidas das montanhas da sua infância. Tudo naquele tempo era tranquilidade e o vento, não se sabia o que fosse. O velho sentou-se numa pedra e olhou a linha longínqua do horizonte, lembrando-se que fora esse mesmo o único lugar do mundo que não alcançara. Suplantando um horizonte, existe um outro e um outro e um outro.
O velho ainda assim sorriu. Respirou fundo, sempre sorrindo. Naquele momento, uma brisa ligeira levou às arvores e aos pássaros as impressões de tudo aquilo que pelo mundo o velho vira.

sexta-feira, dezembro 17, 2004

Ar puro, farrusco céu

Da meia dúzia de blogues obrigatórios na consulta diária - ou por hábito, ou por descarga de consciência - há alguns que são profundamente sensaborões. O de JPP é cada vez mais um deles. Por ele nos apercebemos que JPP convive com os livros e com os alfarrabistas como os peixes com a àgua, mas que não percebe muito da simbiose com o meio natural: ao que sei, JPP é um menino urbano, dai a urgência por tudo o que sejam livrarias e depósitos antigos de livros empoeirados.
Eu também gosto muito de livros, amigo. Mas também sei ler no firmamento indícios de trovoada ou nas névoas a mudança do tempo. E uma coisa lhe digo, o seu ar até pode ser puro. Mas que não deixa de ter mau aspecto, não deixa. Ah, ar puro, ar puro? Ar triste e farrusco céu...

quinta-feira, dezembro 16, 2004

Alargamentos e clausuras

Aos portugueses não agrada a ideia de que a União Europeia alargue horizontes a Oriente. De acordo com os dados de uma sondagem ontem publicada, uma parte considerável dos portugueses entende como negativo um futuro alargamento da União Europeia e reconhece na possível entrada da Turquia no clube da Europa um factor de instabilidade.
Excusado é dizer que aquilo que os portugueses pensam é tão relevante quanto uma mosca em África. Bem podem os portugueses julgar que ou pensar que podem que não fazem mais que atirar impropérios ao marulhar, ao mar imenso. Mas isso não vem ao caso para a presente consideração.
A reacção dos portugueses, dos que responderam à sondagem e dos outros, por ela representados, será legítima? A legitimidade, já se sabe, é tão subjectiva quanto outra coisa qualquer. Parece, ainda assim, que uma tal reacção é, antes de mais e sobretudo primária: é a reacção da galinha choca e encrespada que protege a prole, do gato assanhado espicaçado pelo cão.
O cão, no caso, não é só a Turquia. É a Bulgária e a Roménia (ainda que a maior parte dos porttugueses não saibam ainda que a integração de tais países já é certa) e são todos e cada um dos dez países que desde Maio levaram os limites geográficos da União até às portas da grande Rússia. No fundo e, primordialmente, os portugueses sentem-se ameaçados, acagaçados. Mas a ameaça, ao contrário do que sugere a pedagogia política, não ganha substância no suposto confronto civilizacional, mas sim na poiética económica. A questão civilizacional é parca, senão mesmo irrisória já que Marrocos e a vastidão de África, com toda a panóplia dialéctica de problemas e potencialidades, ficam logo ali a um mar estreito de distância, se é que não se encontram já entre nós.
Os vinte anos que Portugal leva de andanças europeias foram paa muita boa gente uma espécie de "euro milhões" sem sorteio: serviram para as coisas sérias e para as brincadeiras, para o fermento das infraestruturas e para o fausto da classe média. Em vinte anos de Europa os portugueses tomaram o gosto à usura e aprenderam a consumir, a gastar sempre mais. Não houve nesse tempo quem ensinasse a investir: nem instâncias governamentais, nem universidades, nem a própria União Europeia mostraram flexibilidade para educar para a economia depredadora de mercado.
Hoje os portugueses têm medo.Sobretudo de si próprios. De não saberem fazer com a escassez aquilo que nunca souberam fazer sob o signo da fartura.

terça-feira, dezembro 14, 2004

Variações muito humanas

Se eu fosse moço de oferecer música pelo Natal, não hesitaria em oferecer este disco. De preferência a metade dos portugueses e a uma grande parte dos que se dizem músicos ou que aspiram a tal. Porquê? Porque a música de António Variações tem tudo: sonoridade, profundidade, amplitude, intemporalidade, saudade e um ror de outras coisas que fazem com que nos sintamos alegremente findáveis e finitos.
O projecto "Humanos" - uma homenagem que perfaz um acorde de consonância impressionante com aquilo que é António Variações cantado por si mesmo - só não foi capaz de fazer com Variações o que Cristo fez com Lázaro: ressuscitar-lhe o corpo. A alma está lá toda. Tanto que arrepia ouvir e pensar uma música como "Rugas", julgar que conhecemos a "Maria Albertina" que Variações descreve ou embalar a mente no neo-epicurismo de uma dúzia de músicas onde eu diria que mora muito de todos nós. Um bom disco. Todos os dias.

Esta Lisboa que amaste

Era como se o nome, de mil vezes comungado, fosse uma insuspeita divindade, indelével e impensável, rompendo com cores e formas exageradas as colinas de Lisboa, sem outro alcance e sem outro horizonte que um leque de imagens amorfas, com contornos de engano e expectativa absortamente fitos na vacuidade da memória.
Era como se fosse um dogma, esse nome, um lugar sagrado dos canais do ser e do sangue, que ele há dogmas maiores que os do espírito, são os que propulsionam os homens a regressarem a onde nunca estiveram e a aceitarem como seu o que nunca possuíram, sendo que mesmo o tempo, que é um nada etéreo nunca maleável e muito menos reiterável também se pode possuir, basta que se atente ao que se diz, No meu tempo, como eram diferentes as coisas, diferentes os telhados de Lisboa e diferente seria, nesse seu tempo que não se sabe qual terá sido, esta rua do Vale de Santo António, divindade insuspeita mas também ilusória, longe, demasiadamente longe das imagens e dos contornos vagos com os quais se semeou a memória e nela, na sementeira e na memória, os passos de quem por aqui se aventurou há demasiado tempo para que desses dias alguma coisa vingue ainda.
Em muito são as cidades como os areais. Quem com lucidez caminhe junto da linha inconstante da rebentação pode ter sempre como fresca e segura a recordação de ter sentido a espuma frouxa a abalroar-lhe os pés e as passadas. Razão têm os franceses, é uma mulher, la mér, o mar, que morre em carícias ziguezagueantemente rebentando por entre os pés de quem cruza o areal, restando tão só e apenas a memória de um beijo lânguido e húmido e nada mais, nem o ressequir intenso do salitre sobre a pele, nem o feitio disforme dos pés distinguindo a areia, apenas a impressão titânica de se ter o silêncio e a imensidão formigando sob a planta dos pés e o fragor da recordação sempre vivo, No dia em que te visitei, Mar, beijaste-me os pés e eu senti só paz.
Em pouco serão as cidades paisagens de paz, só o estertor dos automóveis ecoando nas fachadas vítreas dos edifícios basta para que a tranquilidade se dilacere e o cansaço se adense, floreando a pele, siderando nervos e humores e paixões, triplicando estupefactas vezes a pressa, o cansaço, as ânsias e mesmo os sonhos, nas cidades, circulam a velocidades proibidas, a mil à hora, não são nem de carne, nem de osso, são um misto de nada e de tudo, do que se tem e do que se querendo, não se alcança. De resto, são em muito as cidades como os areais. Quem com lucidez esbanje os seus dias, as suas forças, os seus sonhos nas ruas, nas avenidas, nas escadinhas e nos pátios, nos becos e nas alamedas, nos jardins e nas praças, se envolva perifericamente no caos oportuno das cidades, mergulhando no macadame e na inconstância dos viadutos, das pontes e das circunvalações, veste a cidade como a uma segunda pele e recorda, não se sabe bem com que fascínio ou com que temor, a esmagadora verticalidade dos prédios, os automóveis coagulando no vermelho dos semáforos como se fossem glóbulos multicolores, os rostos e os passos siderados nas artérias da cidade, os telhados debruçados sobre si próprios, Alfama numa colina, a Estrela ao longe noutra, apenas uma cúpula solta esgueirando-se com natural altivez por entre as fachadas cinzentas, iguais, da demais Lisboa, que é de Lisboa que se trata, Lisboa de ontem e Lisboa de sempre, seria bom que se recordasse, Lisboa, dos teus dias e dos teus passos, mas é como o mar, a cidade: torna indeléveis os homens, apaga-lhe os gestos, quando não mesmo o afago de estranha ternura com que, no momento da despedida enfeitaram o horizonte, o miradouro de Santa Luzia é como que uma caravela descendo o rio, Eis o último sol que vejo morrer sobre Lisboa, amanhã Lisboa, serás para sempre ontem.
Assim terás murmurado há mais de meio século e assim me despeço, por tua mão, da minha e da tua Lisboa. Desço com sofreguidão a Rua do Vale de Santo António, ao encontro daquilo que recordas. O céu macera temporal em novelos de um cinzento fétido que quase rasam o topo dos prédios, o vento enxovalha já o rosto com algumas gotas esparsas, não tarda choverá, é o Inverno que se eterniza, é o Inverno que como eu, se despede, é o Inverno que me faz apertar o casaco contra o peito e estugar o passo.
Chego ao cotovelo do Vale de Santo António. Falaste-me deste palmo de calçada que estende a rua muito para além do cinzento cimento verde do Tejo, para um plano do infinito que rouba a validade quer ao tempo, quer ao espaço, cinquenta anos volveram e sei que no rio se reflecte o mesmo espanto, a mesma majestade. No rio aguarda, encalhado, o teu olhar.
A rua do Vale de Santo António, dizias, é um precipício amansado que se despedaça da Graça até Santa Apolónia, merecia, do cotovelo para baixo um funicular como o da Bica ou da Glória, não é tão sentida a acentuação, mas o Tejo condensado ao fundo parece que rouba o fôlego a quem sobe, parece que encurta os passos a quem desce, intumesce, num sórdido limiar, os olhos- Quase ao fundo da rua morava eu, a vinte metros da capela. E do outro lado, no cruzamento da Leite de Vasconcellos, estava o meu pai, o teu avô, o do meu lado, sempre à janela pela tardinha, era como se fosse uma albergaria só para os trabalhadores dos caminhos-de-ferro. À tardinha, antes da tal que se chamava Dália mandar servir o jantar, era a hora a que o patrão chegava do Alfeite da Marinha, ia à janela só para ver o teu avô do outro lado. Não dizia nada, sabes? Sorria, levava a mão aberta ao peito e depois apontava para a minha janela. E eu era, então, a menina mais feliz dessa Lisboa que amei.

domingo, dezembro 12, 2004

Esta Lisboa que vos ama

“Deixa que te diga que deves de ter passado o mais da tua existência enterrada num frasco de pasta de dentes ou açoitada por banhos frequentes de vinagre e mostarda”. É narrador deste trecho de coisa alguma quem se perde nestas cogitações, monólogo cerrado consigo mesmo ou surdo diálogo com o brilho de uma moeda sem sinais do uso do tempo, um brilho lambido que carcome e enovelesce o brilho próprio do sol, Chegará aqui o sol, a esta montra de vidro frio e opalescento da numismática da Baixa?, chegue que não chegue, és uma senhora moeda, apoquentas os olhos e a cobiça, quem és tu e como brilhas que nem a sombra te tolhe as formas?Com mais altaneiro brio, sentida de tais cogitações, responde a moeda a este vosso narrador com uma leve altercação de brilho, Diz-me lá, ó plebeu indefecto, és assim tão mal nutrido de saber que não vês que quem assim brilha foi maior entre os maiores de Portugal, Johannes V Rex Solis Crepuscularis, rei sol à escala dos crepúsculos da nação, obreiro de coutadas e contadas reformas e das bibliotecas do reino, convento memorial? e não te rememorias deste brilho balofo de óbolo por onde não passou morte, parece não ter passado tempo mas vingou o esquecimento, que brilhava bem mais quem com este nome obrou, real-real, viva el rei de Portugal, que é este lanço de Lisboa sítio deles, basta que se deite o olhar me frente para que se divise, coisa difícil mas não impossível e verdadeira, muito realmente, como se dizia, pois, eis o real por todo o lado, a dobra do torniquete da pata direita do cavalo de D. José, coisa populareira, quase como a tabuada, o aprender-se em tenra idade ser a pata direita do cavalo de D. José afinal a que cavalga à esquerda, cavalo de boas maneiras, este de el-rei, despedaçando as serpentes e os távoras que atentam ao paraíso! mas vai já este vosso narrador embalado em outras navegações e em sôfrego exagero, o que se vê não pode ser senão o tendão cavalar dos cascos traseiros do animal, mirando que está com o rei a outra banda do eflúvio, margem sul, na poética do quotidiano, com a memória nos gasolineiros de outrora, submarinos rasteiros à tona de água, mas já lá chegaremos, por agora ainda não vai esta imperial e feminina rua a meio, Augusta de nome e até de traços, se és Augusta és Augusta velha e triste, Será que és tu, velha, que aqui arrebanhas esmolas e esmoleres?, bem o poderás ser a esta primeira e leve impressão, tens um rosto sem idade, como que todas as canseiras do mundo lavradas na cara, pouco urbano predicativo, melhor será dizer que tens os desgostos do mundo esculpidos na face, o brilho que o rex ali da vitrina, aquele que pregou glória e ocasos crepusculares, tem a mais, tens tu a menos, velha, nem uma réstia de luz vítrea tens nos olhos, decerto terás morrido e ninguém to disse.
Podeis ver, pois, que não é fácil a este vosso narrador alhear-se da sua marcha sem propósito e enveredar por detalhes de somenos e somais que postos e entrepostos conduziriam, duvidas onde as existem, ao criar e recriar dos tempos, à primavera do mundo, coisa estranha de se dizer, semear a primavera do mundo na calçada portuguesa e no rendilhado de sombras desta baixa olissipónica onde a última coisa que terá por certo frutificado terão sido aromas orientais e pecados de quem muito ambiciona e pouco comanda, agora o que se colhe, com a conformidade de quem acarta um cancro na consciência são as procissões impensáveis de turistas, senhor D. José, senhor D. Johannes V, ao que este país se resignou, ser Lisboa um miradouro e uma mágoa debruada de Tejo, E o resto mais de Portugal?
- O resto mais, Altezas? É paisagem.

Regresso adiado

Diabos me levem! Eis uma das falhas deste serviço: depois de algum tempo de outras andanças ou das andanças de sempre, postava. E postava até com prazer. E a luz - leia-se electricidade - sumiu-se por um átimo, um segundo ínfimo. Necessário não é dizer que o ínfimo segundo adiou para amanhã um regresso e o prazer da escrita. Obrigadinha Energias de Portugal!

terça-feira, dezembro 07, 2004

O Prémio

O Ponto Media, blog de António Granado sobre o jornalismo e o universo das notícias enquanto recriação do real, arrecadou o prémio para melhor blog jornalístico em língua portuguesa atribuído pela Deutsche Welle. Se outras justificações (que não o mérito e a pertinência do Ponto Media) fossem necessárias, outras justificações encontrariam pertinência no facto do jornalista e do académico agora agraciado ser, nisto da exploração das possibilidades cibernéticas, um pioneiro e um precursor: o seu blog foi um dos primeiros da “tugosfera” e foi da boca dele que primeiro ouvi falar em tal coisa, a propósito do famoso Drudge Report, quando o termo blog era ainda um palavrão arremessado.
Hoje um blog é como um telemóvel: todo o mundo lhe dá uso. E é por ter conseguido manter impecável e autêntico o rigor e a acutilância a que sempre nos habituou que o prémio para Granado não é apenas merecido. Começava já a ser devido.

Doenças

A julgar pelas notícias de ontem, o atraso do país não é apenas estrutural. É também estranhamente paradigmático e tem na raiz anafada do pensamento político o factor numero um de contraprodução.
Não falando já nesse couto de esperanças abortadas que durante quatro séculos moeu e desmoeu o ego dos portugueses com a mania das grandezas eternas -um sebastianismo gasoso e messiânico que mesmo para mito não deixa de ser de uma paupérrima simplicidade -a análise política e social é, em Portugal, feita nos mesmos trâmites com que se faz a história, versando mais sobre aquilo que é o passado do que concebendo o que deverá ser o futuro.
Quando se escreve fortuitamente - para um blog, por exemplo - uma das técnicas a que se recorre com mais frequencia é a do fingimento: finge-se que é Natal e escreve-se quase como se Natal fosse, o cheiro fingido das rabanadas afogadas em mel, as luzes dispostas em guirlandas como luzecus talhando o escuro no breu da imaginação, a mesa posta com toalha de gala.
Assim fingindo, no dia em que o Natal chega já existe no recheio da mesa de cabeceira um texto com os sabores todos do Natal, a fosforescencia da lareira, o azevinho no canto da sala e a ternura da noite fria...
Com a política e com a justiça - quem duvida que a justiça não seja hoje profundamente política? - o mesmo parece começar a passar-se, a julgar uma vez mais pelas notícias de ontem. Não me interpretem mal, mas a morte de Francisco Sá Carneiro qualquer dia é uma efeméride digna de feriado, o que até nem seria mal pensado, especialmente para os milhões de portugueses que se matam a trabalhar por um salário comichoso e são ainda tributados com o rótulo de pouco competitivos.
Apartando as águas e fazendo colidir os propósitos, sempre que se festeja a morte do dito senhor recuperam-se, com maior ou menor grau de credibilidade, as manobras conspiratórias e a análise política recua efemeritamente a esse tempo dos afonsinhos da democracia portuguesa em que se discutia uma possível integração europeia e em que o país tremia, de vez em quando, com uns tiros e umas bombas e uns murros nas trombas.
Não deixa, ainda assim, de ser estranha a noção de tempo da dita comissão parlamentar que analisa o processo cifrado como sendo o processo de Camarate: será que aqueles senhores estiveram a trabalhar este tempo todo e acabaram o dito relatório com um dia de atraso, desculpável e resoluto? Ou será que escreveram o texto pensando e fingindo, como quem escreve, o Dia em Que Mataram Sá Carneiro?
Seja como for, não importa assim tanto: para quem nasceu no pós Sá Carneiro, os horizontes sobre a figura do político são periclitantes e pouco definidos. Custa, pois, vinte e três anos depois, perceber a pertinência do caso, quando Portugal continua a ser a sombra de qualquer coisa, um ermo sem futuro em que até os cães se passeiam tristes, tanto o passado e o desnorte.

sábado, dezembro 04, 2004

Ligações

O que importa é o ângulo, a forma como se olha. Primogénitamente, importa olhar e acrescentar. Acrescentar um contributo, uma critica, uma acção, a voz viva. Nós, por cá, gostamos de quem se revela, de quem comenta, de quem traduz, de quem se não ausenta. Nós, por cá, saudamo-lo a ele e à forma magnanima e tropical com que acolhe o mundo.

quinta-feira, dezembro 02, 2004

O Caima (sem celulose)

Quando as preciosidades não são valorizadas, acontece que acabam vulgarizadas. Se de um aforismo tal constatação se tratasse muito de precioso existe nos nossos dias que ignoramos mais por infelicidade própria que por desconhecimento, mais por ignominia do que por desmazelo. O Caima é uma preciosidade. Explique-se: como todos os rios e todas as correntes, o Caima tem duas vidas. A primeira conflui num correr sossegado, num regatear brando, na sombra aconchegante dos amieiros e das avelaneiras, no coaxar esparso das rãs, nos espelhos de água que se multiplicam ao longo de parcos quilómetros, no bel prazer e na sedução.
A outra, a segunda, é mais enfadonha e muito menos radiante, remete para o rio causticado pelo Homem, na marca da cidade e do império fabril no tom terroso e acastanhado das água, na ausência de calma e de transparência, a luz dilacerando a corrente, ofuscando o leito, o Caima depois de Cambra, o Caima depois de Azeméis, o Caima depois do Homem.
Acontece ao Caima ser um rio vulgar, tão vulgar quanto todos os outros com as mesmas pústulas e as mesmas cicatrizes. Ao menos no que concerne ao troço de rio que corre da praia fluvial de Burgães para baixo em direcção ao Vouga; de Burgães para cima, até essa coisa medonha e majestral que é a Frecha da Mizarela, o Caima é uma universo à parte, um ecossistema riquíssimo e variado que o homem condenou, por esquecimento deliberado ou por expedita cegueira a uma trivialização progressiva: há pouco mais de três décadas, do correr em bruto do rio bebiam os rodízios dos moinhos, a água do Caima funcionava como força motriz para a moagem de cereais e os açudes que alimentavam o engrenar das mós de mais de quase duas dúzias de moinhos eram como viveiros naturais onde espécies como a truta, a boga e o bordalo pontificavam aos milhares. Pelo leito do Caima não corria apenas um rio em seu curso, corria um sem fim de vida.
Com o declínio da agricultura e as facilidades concedidas pelos meios e vias de comunicação, certos gestos, certos hábitos, certas necessidades perderam o sentido de que outrora se revestiam: o milho, aos alqueires, deixou de ter os moinhos por destino, os rodízios pararam de girar, as mós de matraquear. Com os anos, o Homem voltou as costas ao rio e os telhados dos velhos moinhos afundaram-se sobre si próprios até ruírem, as paredes dos açudes abriram frechas, em dias de temporal desabaram e acabaram por seguir a força da água no seu curso. O rio, diga-se, nunca mais foi o mesmo.